terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

TELHADO DE GRAMA





Andei sumida, sem escrever, matutando e tentando fazer minhas pazes com o tempo. Nesse período, algumas imagens me marcaram. Um barco sem motor atracado próximo da praia em João Pessoa, sendo jogado em todas as direções pelas ondas, e ao sabor delas. A estrada que corta os morros de Araguari, Minas Gerais, com seu traçado curvo, pista simples e muito movimento de caminhão. E o mato que tomou conta do meu querido e problemático telhado de grama, desde o final do ano passado.

Os passarinhos, uma das coisas mais lindas desse pedaço da casa, trouxeram ervas daninhas de vários tipos e fizeram uma plantação delas por lá. Ficou impossível retomar esse espaço, sem refazer completamente o bendito. Ah! Os baldes móveis no chão do meu quarto para aparar as goteiras dinâmicas da estação de chuvas também é outra das imagens marcantes desses meses.

Como diz meu filho mais novo, não estou falando coisa com coisa. Mas tenham um pouco de paciência comigo e vão entender o que tem o telhado de grama a ver com minhas pazes com o tempo. Hoje recebi uma mensagem do meu amigo português, poesia e filosofia puras, um presente, sempre, essa nossa correspondência. No Natal de 2016, soube que ele havia perdido a netinha de apenas três anos, vítima de um estúpido acidente doméstico. Desde então, ele não havia dado sinal de vida, apesar das mensagens enviadas.

Mas, para minha felicidade, ele retomou a comunicação com o mundo e me deu a honra de receber notícias, num texto sobre o qual falava principalmente sobre o TEMPO. Esse que não passa e anda feito caracol, segundo ele, embora eu ache que está mais para lesma (não sei se elas existem em Portugal), quando a gente está no fundo de um alçapão, esperando resgate, sabe-se lá QUANDO, vindo sabe-se lá de onde. E assim é o tempo das grandes perdas, do luto, das separações irrevogáveis, da doença, enfim, de todos esses eventos dolorosos e, sim, normais na vida por aqui.

Mas, estranhamente, esse mesmo tempo voa para o mundo e todos os que nos rodeiam, nele acontecem milhares de coisas boas e ruins, e a gente, no tempo do alçapão, sente que está devendo às pessoas e a nós mesmos, porque todo tempo é para ser vivido, aproveitado, sorvido até a última gota porque não volta mais, mas a gente simplesmente não consegue e tem que aceitar isso também, além de tantas outras coisas indigestas.

Do lado de cá do Atlântico, essa reflexão me atingiu como um raio. Como se, de repente, o sentido das imagens que me marcaram, nesses meses de silêncio, e os sentimentos que hoje tomam conta do meu coração, ficassem claros. Dois anos se passaram desde que caí no alçapão. Lá dentro, travei batalhas violentas com o TEMPO - o que ficou para trás sem possibilidade de retorno, o que foi absurdamente negado ao meu marido e a mim tão cedo na nossa história, o que está pela frente e parecia uma eternidade intragável, quase um castigo, lá do fundo do alçapão. Também o meu tempo, 42 anos completos, sem a menor ideia do próximo passo, sem o frescor e a inocência dos 26 anos, quando conheci meu amor.

O tempo da IMPOTÊNCIA, a mesma do barquinho em João Pessoa, do carro na estrada em Araguari atrás de uma fila enorme de caminhões, do mato que tomou conta do meu telhado e da goteira no meu quarto. Um tempo que, embora seja o meu maior patrimônio neste mundo, não me pertence completamente porque sou obrigada a compartilhá-lo com circunstâncias alheias à minha vontade. Pior, um tempo que não dá garantias a ninguém, nem consulta sobre o momento mais adequado para nada.

Mas é também o tempo que traz um sorriso olho no olho, que faz o coração pulsar novamente pela VIDA de aqui e de AGORA, meio desconfiado e tonto, com certeza, mas com um interesse renovado no porvir e não apenas no que se foi. E, logo depois, o mesmo tempo lembra que não existe portal de retorno ao que se perdeu e que não dá para roubar, fingindo que aceitou a perda e buscando o tempo inteiro recompor o que não existe mais. À revelia da nossa mais profunda vontade de chegar ao famoso FINAL FELIZ, o tempo mostra de forma contundente que o novo exige paciência, humildade, perseverança e criatividade para ser construído, dia-a-dia, até um desfecho provavelmente diferente do que nós esperamos.

Traz também presentes que já não esperávamos mais receber a essa altura da vida, como o pai que eu sempre quis e que agora, depois de tantos percalços, TENHO. Quem diria? Não que ele não estivesse estado sempre ao meu lado, mas antes havia barreiras dos dois lados a serem vencidas para que pudéssemos nos aceitar assim, sem reservas, como hoje. E só o TEMPO pode abençoar alguém com uma alegria desse porte, junta, misturada e intimamente relacionada com as toneladas de dúvidas e perplexidades dos últimos anos.

Fazer as pazes com o tempo talvez seja ACEITAR que o TEMPO do TEMPO é o TEMPO exato, nem antes, nem depois, só na hora. Isso não garante ausência de dor ou novas perdas no horizonte, mas alivia o sofrimento porque se para de querer “resolver” a vida por entender que ela simplesmente não tem solução e nem chegada, só fluxo contínuo. É o que a casa oferece.  

Voltando ao telhado de grama, decidir, ainda em meio a um futuro profissional indefinido, refazê-lo agora pode ser visto por alguns como uma temeridade. Mas foi isso que fiz e não me arrependi. Ficou lindo! Preservou o espírito de antes, com uma cara NOVA, minha, de HOJE, saindo lentamente do alçapão, sem resgate e pelas próprias pernas, mas com uma torcida igual a do Flamengo, em número, e a do Corinthians, em entusiasmo e fidelidade, me dando força! Morrendo de medo de ser subitamente jogada novamente lá no fundo, mas certa de que o TEMPO está do meu lado porque finalmente estamos em paz.  

PS - Este texto eu dedico com todo amor ao meu amigo português e à sua filha, que não conheço, mas que me foi descrita como uma verdadeira guerreira Samurai, para que se lembrem, lá de onde o tempo não passa NUNCA, que ele trabalha por nós sempre, mesmo quando parece o contrário.

GOSTOU?! #debaixodosipes

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