Andei sumida, sem escrever,
matutando e tentando fazer minhas pazes com o tempo. Nesse período, algumas
imagens me marcaram. Um barco sem motor atracado próximo da praia em João
Pessoa, sendo jogado em todas as direções pelas ondas, e ao sabor delas. A
estrada que corta os morros de Araguari, Minas Gerais, com seu traçado curvo,
pista simples e muito movimento de caminhão. E o mato que tomou conta do meu
querido e problemático telhado de grama, desde o final do ano passado.
Os passarinhos, uma das coisas
mais lindas desse pedaço da casa, trouxeram ervas daninhas de vários tipos e
fizeram uma plantação delas por lá. Ficou impossível retomar esse espaço, sem
refazer completamente o bendito. Ah! Os baldes móveis no chão do meu quarto
para aparar as goteiras dinâmicas da estação de chuvas também é outra das imagens
marcantes desses meses.
Como diz meu filho mais novo, não
estou falando coisa com coisa. Mas tenham um pouco de paciência comigo e vão
entender o que tem o telhado de grama a ver com minhas pazes com o tempo. Hoje
recebi uma mensagem do meu amigo português, poesia e filosofia puras, um
presente, sempre, essa nossa correspondência. No Natal de 2016, soube que ele
havia perdido a netinha de apenas três anos, vítima de um estúpido acidente
doméstico. Desde então, ele não havia dado sinal de vida, apesar das mensagens
enviadas.
Mas, para minha felicidade, ele
retomou a comunicação com o mundo e me deu a honra de receber notícias, num
texto sobre o qual falava principalmente sobre o TEMPO. Esse que não passa e anda
feito caracol, segundo ele, embora eu ache que está mais para lesma (não sei se
elas existem em Portugal), quando a gente está no fundo de um alçapão,
esperando resgate, sabe-se lá QUANDO, vindo sabe-se lá de onde. E assim é o
tempo das grandes perdas, do luto, das separações irrevogáveis, da doença,
enfim, de todos esses eventos dolorosos e, sim, normais na vida por aqui.
Mas, estranhamente, esse mesmo
tempo voa para o mundo e todos os que nos rodeiam, nele acontecem milhares de
coisas boas e ruins, e a gente, no tempo do alçapão, sente que está devendo às
pessoas e a nós mesmos, porque todo tempo é para ser vivido, aproveitado,
sorvido até a última gota porque não volta mais, mas a gente simplesmente não
consegue e tem que aceitar isso também, além de tantas outras coisas indigestas.
Do lado de cá do Atlântico, essa
reflexão me atingiu como um raio. Como se, de repente, o sentido das imagens
que me marcaram, nesses meses de silêncio, e os sentimentos que hoje tomam
conta do meu coração, ficassem claros. Dois anos se passaram desde que caí no
alçapão. Lá dentro, travei batalhas violentas com o TEMPO - o que ficou para
trás sem possibilidade de retorno, o que foi absurdamente negado ao meu marido
e a mim tão cedo na nossa história, o que está pela frente e parecia uma
eternidade intragável, quase um castigo, lá do fundo do alçapão. Também o meu
tempo, 42 anos completos, sem a menor ideia do próximo passo, sem o frescor e a
inocência dos 26 anos, quando conheci meu amor.
O tempo da IMPOTÊNCIA, a mesma do
barquinho em João Pessoa, do carro na estrada em Araguari atrás de uma fila
enorme de caminhões, do mato que tomou conta do meu telhado e da goteira no meu
quarto. Um tempo que, embora seja o meu maior patrimônio neste mundo, não me
pertence completamente porque sou obrigada a compartilhá-lo com circunstâncias
alheias à minha vontade. Pior, um tempo que não dá garantias a ninguém, nem
consulta sobre o momento mais adequado para nada.
Mas é também o tempo que traz um
sorriso olho no olho, que faz o coração pulsar novamente pela VIDA de aqui e de
AGORA, meio desconfiado e tonto, com certeza, mas com um interesse renovado no
porvir e não apenas no que se foi. E, logo depois, o mesmo tempo lembra que não
existe portal de retorno ao que se perdeu e que não dá para roubar, fingindo
que aceitou a perda e buscando o tempo inteiro recompor o que não existe mais. À
revelia da nossa mais profunda vontade de chegar ao famoso FINAL FELIZ, o tempo
mostra de forma contundente que o novo exige paciência, humildade, perseverança
e criatividade para ser construído, dia-a-dia, até um desfecho provavelmente
diferente do que nós esperamos.
Traz também presentes que já não
esperávamos mais receber a essa altura da vida, como o pai que eu sempre quis e
que agora, depois de tantos percalços, TENHO. Quem diria? Não que ele não
estivesse estado sempre ao meu lado, mas antes havia barreiras dos dois lados a
serem vencidas para que pudéssemos nos aceitar assim, sem reservas, como hoje.
E só o TEMPO pode abençoar alguém com uma alegria desse porte, junta, misturada
e intimamente relacionada com as toneladas de dúvidas e perplexidades dos
últimos anos.
Fazer as pazes com o tempo talvez
seja ACEITAR que o TEMPO do TEMPO é o TEMPO exato, nem antes, nem depois, só na
hora. Isso não garante ausência de dor ou novas perdas no horizonte, mas alivia
o sofrimento porque se para de querer “resolver” a vida por entender que ela
simplesmente não tem solução e nem chegada, só fluxo contínuo. É o que a casa
oferece.
Voltando ao telhado de grama,
decidir, ainda em meio a um futuro profissional indefinido, refazê-lo agora
pode ser visto por alguns como uma temeridade. Mas foi isso que fiz e não me
arrependi. Ficou lindo! Preservou o espírito de antes, com uma cara NOVA, minha,
de HOJE, saindo lentamente do alçapão, sem resgate e pelas próprias pernas, mas
com uma torcida igual a do Flamengo, em número, e a do Corinthians, em
entusiasmo e fidelidade, me dando força! Morrendo de medo de ser subitamente
jogada novamente lá no fundo, mas certa de que o TEMPO está do meu lado porque
finalmente estamos em paz.
PS - Este texto eu dedico com todo amor ao meu amigo português e à
sua filha, que não conheço, mas que me foi descrita como uma verdadeira
guerreira Samurai, para que se lembrem, lá de onde o tempo não passa NUNCA, que
ele trabalha por nós sempre, mesmo quando parece o contrário.
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