Do baú da mãe de uma grande amiga, abril de 2000.
Os dias em isolamento deixaram de pesar, por isso não os conto mais. Algum mecanismo dentro de mim encaixou, junto com um pedaço novo do inconsciente tornado visível, que me trouxe a sensação de poder encarar as marés adiante, mesmo sem ter a menor ideia da rota ou da duração delas. A essência de existir nos últimos anos, para mim, têm sido: dançar conforme a música, de estilos variados, sempre inesperados, tocadas por um DJ que se entedia rápido e troca os hits sem alívio ou repetição, tipo aquela brincadeira de dança das cadeiras, com alguém sempre caindo de bunda no chão. Consegui me manter em movimento, mas sem entrar no transe maravilhoso da dança feita de corpo e alma entregues. A presença permanente, mais ou menos pronunciada dependendo do momento, de um peso a bordo me impediu: pânico de perder o ritmo, ficar sem repertório de passos ou improvisos, ser atropelada e não levantar mais.
Mas, entre uma série de atividades de teletrabalho, o aviso prévio, a finalização de uma consultoria grande, o preenchimento de projetos diversos de choro e escrita, o tricô, o estudo de variações do maxixe, a candidatura para possíveis vagas de novos empregos, a yoga e os benditos almoço e janta de todo dia, claro, veio um clique! Minha vida tem sido, dentro ou fora de isolamento, um misto de - pandeiro, catar lixo na ciclovia, leis de enfrentamento à lavagem de dinheiro e à corrupção, marketing jurídico, projeto musical de choro, escrita de ficção, violência contra mulher, consultorias em ensino superior, inovação, guias sobre jovens e política, fake news, documentos técnicos sobre saúde do trabalhador, acidentes por causas externas e uma enormidade de sites e redes sociais diferentes para cuidar. E até hoje não troquei os canais, nem dei pinta de estar perdida, mesmo estando demais, seja em relação aos assuntos ou à forma das pessoas se relacionarem, nem sempre transparentes, como eu prefiro. E o principal: não parei de me mover adiante, adiante, adiante, ancorada em longas noites de sono reparador, que começam em torno das 21h30 e me preparam para a mixagem preferida do DJ do dia.
Não consigo fazer sentido do contexto político? Bom, acontece comigo pelo menos desde 2014, com enorme intensidade, pela proximidade e participação ativa do meu falecido marido nesse campo minado e pela minha própria paixão pelo tema. Não sei qual será o futuro da minha profissão? Tenho que ser justa com esse item, o vírus ducha só aumentou o calor na fogueira alta, há anos. Não sei se terei um planeta para deixar para meus filhos? Infelizmente, essa angústia não chegou no isolamento, só tornou-se MUITO concreta. Não entendo os relacionamentos amorosos hoje, depois de tantos anos numa interação singular de amor? Bom, estou nessa desde 2015, quando voltei a ser solteira.
E, ao constatar tudo isso, no lugar de sentir um medo brotando, o que seria normal, diga-se de passagem, senti um sorriso sacana tipo o do Buda, com todo respeito, nascendo, com um recadinho assim: "Se joga, garota! Que baile animado assim não dá para jogar fora!" E isso fez um sentido gigante, em meio a mais uma encruzilhada da minha vida particular, junta e misturada com uma confusão no mundo. Como, aliás, tem feito parte do caminho da minha geração, que nasceu num mundo cheio de regras e certezas, foi socializada nelas, cresceu em conflito permanente entre desafiá-las ou segui-las até a morte, e, chegando aos 40, deu de cara com mundo em NADA parecido com o que nos prometeram se fôssemos boas meninas e meninos. Então, quer saber do que mais?
Olhei para trás e percebi a clareza com que o caminho se fez para mim, mesmo num mar de dúvidas e incertezas, e apreciei sem vergonha ou pudor minha conexão clara e direta com meus desejos e meu valor como ser humano. ENFIM! Embora eu sempre tenha fingido bem demais ser essa pessoa desde que nasci, como quase todos os que me conhecem atestariam. Mas agora, galera, é pra valer! Então, agradeci a oportunidade de me jogar nessas águas adiante do jeito que vierem, dinâmicas como nunca, cada vez menos preocupada com o que me ensinaram sobre o mar que eu quero experimentar entregue à minha experiência dele, e levando comigo o essencial apenas.
domingo, 26 de abril de 2020
domingo, 19 de abril de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - UM MÊS COMPLETO
Ensaios na quarentena com Bernardo Bernardes pelo Skype.
Isolar-se consigo mesmo traz reflexões e reações diferentes em cada um de nós. Conversando com uma amiga que tem ensaiado escrever sobre esse tempo e desistido várias vezes, por algum razão inexplicável, percebi, a partir da observação feita por ela, o quanto universalidade e particularidade se entrelaçam nesse período. A impotência com a pandemia e os complicadores que só os brasileiros precisam lidar de um cenário político bizarro são de todos nesses dias. Mas a variedade dos mergulhos de cada um, enquanto isso, é infinita e muito distinta. Depois de revelar sonhos por aqui, me permitirei ir um pouco além e deixar entrever outras viagens em curso aqui no meu barquinho de papel.
Em junho de 2016, fui demitida pela primeira vez na vida. Um baque a mais em cima do luto do meu falecido marido, que completava então 15 meses apenas. Formada em jornalismo, exerci praticamente todas as funções tradicionais da profissão: repórter, editora e assessora de imprensa, para citar as principais, mas, doze anos antes, havia tomado um "desvio" desejado, e facilitado pelo "destino" de alguma forma, e me tornado gestora de projetos no governo na área de Direitos Humanos. Dali, pulei para organismos internacionais, onde enveredei pela coordenação de pesquisa em temas diversos e segui em navegações novamente no governo sobre assuntos variados, desde formação e qualificação profissional até inovação, nanotecnologia, setor aeroespacial, engenharia e muito mais.
Aprendi essa nova área como quase tudo na vida: metendo a cara, sem vergonha mesmo, e prestando muita atenção nas coisas, tentando estabelecer um sentido lógico (nem sempre possível) às informações e mobilizando minhas habilidades coringa de comunicação, alguma criatividade e muito senso prático para realizar as tarefas recebidas dentro do prazo. Mas, ao ser devolvida ao mar dos desempregados, cada vez maior desde aquele algo distante 2016, não tinha certificação dessa nova "profissão" e não queria e nem tinha como voltar à trajetória interrompida em 2004 como jornalista tradicional.
Engraçado como, só agora, em isolamento, quase quatro anos depois, e cumprindo aviso prévio novamente, em outro emprego no qual estive pelos dois últimos anos e onde tive a oportunidade de estabilizar novamente minha vida, percebo a reinvenção pela qual passei. Em algum lugar de mim, havia um poço de não-talentos pelos quais tinha imensa atração e igual aversão, no sentido de medo: dar certo, dar errado, empatar, não dar em nada, me destruir. Sei lá. Compunham aqueles desejos ardentes mais duramente criticados e, por isso mesmo, incendiários, que guardamos num dos muitos baús do inconsciente, que se tornam conscientes aqui e ali, quase por encanto. E quem não tem nada a perder, como eu sentia finalmente não ter em 2016, resolvi me entregar aos meus fantasmas de dor, e de prazer também, por que não? Obviamente não sem MUITO medo e idas e vindas com relação ao acerto da decisão, muitos recuos, alguns avanços a passos suados. E, assim, me matriculei na Escola de Choro Raphael Rabelo como aluna de pandeiro.
E, nas batidas com som de bacia do meu pandeiro, que incomodava, desde a sua chegada pelo correio em 2013, ouvidos mais sensíveis que os meus, descobri talentos e aprendi a usá-los com uma facilidade e resultados surpreendentes para mim mesma. Eles me levaram a redescobrir minha vocação original para a comunicação social - sim, essa área maltratada no mercado de trabalho, assolada por uma crise estrutural absurda, mas tão essencial ao ser humano e tão minha desde sempre. E, nesse caldo, emergiu uma verve empreendedora e artística (SIM!!), que libertou minha voz de escritora com a publicação do meu primeiro livro de crônicas, contos, mais um romance, a produção cultural de um projeto musical e, mais recentemente, a união de tudo o que mais agrada meu coração atualmente - história, música, palavra, som e afeto entrelaçados no meu primeiro livro infantil "A Lua Curiosa e o Planalto Central", em fase de produção como audiolivro. O post de hoje são flashes dos ensaios da locução realizados toda segunda-feira, pelo skype, com meu amigo Bernardo Bernardes. E olha que descobri ter muito jeito para a coisa, modéstia à parte.
E o pandeiro, que sempre foi um dos maiores desafios de aprendizado da minha vida, finalmente parece ter se ajeitado na minha mão!! Acreditam? Justo quando entrei em ensino à distância e achei que iria naufragar, veio uma autonomia no instrumento até então suada e intermitente, que talvez fosse muito mais fruto de uma insegurança e uma eterna briga interna minha com meu amor por esse instrumento tão simples e difícil do que qualquer outra coisa. Revelações que só isolar-se consigo mesma trazem.
Isolar-se consigo mesmo traz reflexões e reações diferentes em cada um de nós. Conversando com uma amiga que tem ensaiado escrever sobre esse tempo e desistido várias vezes, por algum razão inexplicável, percebi, a partir da observação feita por ela, o quanto universalidade e particularidade se entrelaçam nesse período. A impotência com a pandemia e os complicadores que só os brasileiros precisam lidar de um cenário político bizarro são de todos nesses dias. Mas a variedade dos mergulhos de cada um, enquanto isso, é infinita e muito distinta. Depois de revelar sonhos por aqui, me permitirei ir um pouco além e deixar entrever outras viagens em curso aqui no meu barquinho de papel.
Em junho de 2016, fui demitida pela primeira vez na vida. Um baque a mais em cima do luto do meu falecido marido, que completava então 15 meses apenas. Formada em jornalismo, exerci praticamente todas as funções tradicionais da profissão: repórter, editora e assessora de imprensa, para citar as principais, mas, doze anos antes, havia tomado um "desvio" desejado, e facilitado pelo "destino" de alguma forma, e me tornado gestora de projetos no governo na área de Direitos Humanos. Dali, pulei para organismos internacionais, onde enveredei pela coordenação de pesquisa em temas diversos e segui em navegações novamente no governo sobre assuntos variados, desde formação e qualificação profissional até inovação, nanotecnologia, setor aeroespacial, engenharia e muito mais.
Aprendi essa nova área como quase tudo na vida: metendo a cara, sem vergonha mesmo, e prestando muita atenção nas coisas, tentando estabelecer um sentido lógico (nem sempre possível) às informações e mobilizando minhas habilidades coringa de comunicação, alguma criatividade e muito senso prático para realizar as tarefas recebidas dentro do prazo. Mas, ao ser devolvida ao mar dos desempregados, cada vez maior desde aquele algo distante 2016, não tinha certificação dessa nova "profissão" e não queria e nem tinha como voltar à trajetória interrompida em 2004 como jornalista tradicional.
Engraçado como, só agora, em isolamento, quase quatro anos depois, e cumprindo aviso prévio novamente, em outro emprego no qual estive pelos dois últimos anos e onde tive a oportunidade de estabilizar novamente minha vida, percebo a reinvenção pela qual passei. Em algum lugar de mim, havia um poço de não-talentos pelos quais tinha imensa atração e igual aversão, no sentido de medo: dar certo, dar errado, empatar, não dar em nada, me destruir. Sei lá. Compunham aqueles desejos ardentes mais duramente criticados e, por isso mesmo, incendiários, que guardamos num dos muitos baús do inconsciente, que se tornam conscientes aqui e ali, quase por encanto. E quem não tem nada a perder, como eu sentia finalmente não ter em 2016, resolvi me entregar aos meus fantasmas de dor, e de prazer também, por que não? Obviamente não sem MUITO medo e idas e vindas com relação ao acerto da decisão, muitos recuos, alguns avanços a passos suados. E, assim, me matriculei na Escola de Choro Raphael Rabelo como aluna de pandeiro.
E, nas batidas com som de bacia do meu pandeiro, que incomodava, desde a sua chegada pelo correio em 2013, ouvidos mais sensíveis que os meus, descobri talentos e aprendi a usá-los com uma facilidade e resultados surpreendentes para mim mesma. Eles me levaram a redescobrir minha vocação original para a comunicação social - sim, essa área maltratada no mercado de trabalho, assolada por uma crise estrutural absurda, mas tão essencial ao ser humano e tão minha desde sempre. E, nesse caldo, emergiu uma verve empreendedora e artística (SIM!!), que libertou minha voz de escritora com a publicação do meu primeiro livro de crônicas, contos, mais um romance, a produção cultural de um projeto musical e, mais recentemente, a união de tudo o que mais agrada meu coração atualmente - história, música, palavra, som e afeto entrelaçados no meu primeiro livro infantil "A Lua Curiosa e o Planalto Central", em fase de produção como audiolivro. O post de hoje são flashes dos ensaios da locução realizados toda segunda-feira, pelo skype, com meu amigo Bernardo Bernardes. E olha que descobri ter muito jeito para a coisa, modéstia à parte.
E o pandeiro, que sempre foi um dos maiores desafios de aprendizado da minha vida, finalmente parece ter se ajeitado na minha mão!! Acreditam? Justo quando entrei em ensino à distância e achei que iria naufragar, veio uma autonomia no instrumento até então suada e intermitente, que talvez fosse muito mais fruto de uma insegurança e uma eterna briga interna minha com meu amor por esse instrumento tão simples e difícil do que qualquer outra coisa. Revelações que só isolar-se consigo mesma trazem.
domingo, 12 de abril de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - 24 DIAS DEPOIS
Dançando na quarentena com a filha.
Entre noites de sonhos intensos e dias indiferenciados, existo pela metade. Faz mais de uma semana que vejo, enquanto durmo, todos os dias, variações de uma mesma história. Meu falecido marido volta, depois de ter fingido a própria morte e me deixado por anos a fio, enquanto vivia aventuras de todo tipo. Não bastasse isso, está a cada sonho me traindo com uma mulher diferente, uma delas, uma integrante da geração millenium que, ao me ver, tem a coragem de criticar o meu decote como uma atitude machista da minha parte. Pode? Em algum momento, pelo menos consigo o direito a uma DR, mas com ele preso dentro de um televisor e eu debruçada do lado de fora, gritando como uma doida no meio da rua deserta. O sorriso pilantra, um dos mais bonitos e charmosos dele, tenho de admitir, sempre ali, perto e longe, me atordoando e atiçando uma raiva e impotência indescritíveis.
Isso fez com que acordasse, quase sempre, dominada por essa sensação vinda de um enredo impossível, mas tão real e repetido pelo meu inconsciente que deve trazer alguma mensagem a qual teimo em tentar decifrar. Nessa existência paralela, pela metade, joguei a toalha na cozinha. Não só porque sou péssima, mas porque ODEIO serviço de casa, todo ele, sem exceção, mas principalmente alimentar os outros. Até bolo de caixa de mercado sai errado na minha mão. Acredite. Tentei na semana que passou e foi desastroso. Não tinha ideia do quanto tenho aversão às tarefas domésticas, basicamente porque, como uma Patricinha do Lago Sul, nunca tinha sido obrigada a realizá-las diariamente como agora. Mas vamos tocando os três com lanches e uns quitutes aqui e ali mandados pela irmã e sobrinha, mãos de fada na cozinha e um ifood cá e outro acolá, que ninguém é de ferro. Pelo menos, ganhar peso na quarentena não tem sido uma questão. Numa das danças da última semana, mais concentrada nos quadris, acordei toda dolorida, quase sem poder pisar no chão e tive de dar um tempo na diversão que ilustra o post de hoje. Mais uma frustração dessa quarta semana de isolamento.
Fiz 45 anos em janeiro e devo confessar uma certa angústia com a aproximação daquele ponto de virada na trajetória de todo ser humano. Não é o declínio, ainda, mas aqueles metros finais antes do pico da montanha russa e depois, naturalmente, iniciar a descida. Claro que essa descendente pode ser lenta, controlada e prolongada ao máximo, tipo o achatamento da curva do vírus, no qual estamos todos trabalhando. Mas dá trabalho à beça e tem vários sacrifícios, como percebemos a essa altura. A questão que me pega hoje é o desperdício desse tempo coladinho no cume da subida de uma vida inteira. Como se o isolamento me roubasse um naco da existência particularmente valioso.
E o que será que o meu falecido marido tem a ver com tudo isso? Não saberia dizer e talvez não haja nenhum sentido objetivo e articulado nesses sonhos. Mas chutaria a existência de uma vontade de reencontrar, na vida real, um objeto de amor, correspondido, vejam bem. Algo que demorou muito a aflorar nesses mais de cinco anos em que estou viúva. Identificar novamente essa chama em mim e não poder agir sobre ela só torna esse tempo meio vivido mais revoltante e alongado para mim. Mas, diante das alternativas dadas por malucos de plantão, em seus planos mirabolantes para driblar o vírus que botou o mundo inteiro em xeque, respiro e penso que, antes uma pausa que um ponto final. E, assim, sigo riscando os dias do calendário desse 2020 que sinto não ter começado de fato.
Entre noites de sonhos intensos e dias indiferenciados, existo pela metade. Faz mais de uma semana que vejo, enquanto durmo, todos os dias, variações de uma mesma história. Meu falecido marido volta, depois de ter fingido a própria morte e me deixado por anos a fio, enquanto vivia aventuras de todo tipo. Não bastasse isso, está a cada sonho me traindo com uma mulher diferente, uma delas, uma integrante da geração millenium que, ao me ver, tem a coragem de criticar o meu decote como uma atitude machista da minha parte. Pode? Em algum momento, pelo menos consigo o direito a uma DR, mas com ele preso dentro de um televisor e eu debruçada do lado de fora, gritando como uma doida no meio da rua deserta. O sorriso pilantra, um dos mais bonitos e charmosos dele, tenho de admitir, sempre ali, perto e longe, me atordoando e atiçando uma raiva e impotência indescritíveis.
Isso fez com que acordasse, quase sempre, dominada por essa sensação vinda de um enredo impossível, mas tão real e repetido pelo meu inconsciente que deve trazer alguma mensagem a qual teimo em tentar decifrar. Nessa existência paralela, pela metade, joguei a toalha na cozinha. Não só porque sou péssima, mas porque ODEIO serviço de casa, todo ele, sem exceção, mas principalmente alimentar os outros. Até bolo de caixa de mercado sai errado na minha mão. Acredite. Tentei na semana que passou e foi desastroso. Não tinha ideia do quanto tenho aversão às tarefas domésticas, basicamente porque, como uma Patricinha do Lago Sul, nunca tinha sido obrigada a realizá-las diariamente como agora. Mas vamos tocando os três com lanches e uns quitutes aqui e ali mandados pela irmã e sobrinha, mãos de fada na cozinha e um ifood cá e outro acolá, que ninguém é de ferro. Pelo menos, ganhar peso na quarentena não tem sido uma questão. Numa das danças da última semana, mais concentrada nos quadris, acordei toda dolorida, quase sem poder pisar no chão e tive de dar um tempo na diversão que ilustra o post de hoje. Mais uma frustração dessa quarta semana de isolamento.
Fiz 45 anos em janeiro e devo confessar uma certa angústia com a aproximação daquele ponto de virada na trajetória de todo ser humano. Não é o declínio, ainda, mas aqueles metros finais antes do pico da montanha russa e depois, naturalmente, iniciar a descida. Claro que essa descendente pode ser lenta, controlada e prolongada ao máximo, tipo o achatamento da curva do vírus, no qual estamos todos trabalhando. Mas dá trabalho à beça e tem vários sacrifícios, como percebemos a essa altura. A questão que me pega hoje é o desperdício desse tempo coladinho no cume da subida de uma vida inteira. Como se o isolamento me roubasse um naco da existência particularmente valioso.
E o que será que o meu falecido marido tem a ver com tudo isso? Não saberia dizer e talvez não haja nenhum sentido objetivo e articulado nesses sonhos. Mas chutaria a existência de uma vontade de reencontrar, na vida real, um objeto de amor, correspondido, vejam bem. Algo que demorou muito a aflorar nesses mais de cinco anos em que estou viúva. Identificar novamente essa chama em mim e não poder agir sobre ela só torna esse tempo meio vivido mais revoltante e alongado para mim. Mas, diante das alternativas dadas por malucos de plantão, em seus planos mirabolantes para driblar o vírus que botou o mundo inteiro em xeque, respiro e penso que, antes uma pausa que um ponto final. E, assim, sigo riscando os dias do calendário desse 2020 que sinto não ter começado de fato.
quarta-feira, 8 de abril de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - 19 DIAS DEPOIS
Primeira produção de tricô da quarentena.
A crônica dos dias retirados do mundo pode ser tão intensa quanto a de tempos normais. Pelo menos no meu cantinho do mundo, desfilaram alguns acontecimentos curiosos. Começo pelo mundo animal. Morar na beira de um vale numa área de preservação ambiental, como diz meu arquiteto, um dos primeiros permacultores do Brasil, é lutar com a natureza pela ocupação efetiva do espaço diariamente. Em outras palavras, a ausência humana em qualquer parte da casa ou do terreno se denuncia pela presença mais acentuada (e nem sempre desejada) de algum outro ser vivo - planta, animal, inseto e por aí vai. O que faz sentido para a sustentabilidade da vida. Ninguém merece mais do que consegue usar de verdade. Primeiro sinal de presença humana reduzida nessa quarentena? Menos barulho e mais passarinhos, fato relatado antes, aliás, neste diário.
Depois vieram os quatis, cada vez mais próximos da minha varanda, devorando bananas e mamões em broto e me constrangendo durante minha prática de Ioga. Tive medo de fechar os olhos no relaxamento ou numa postura de equilíbrio e, ao abrir, dar de cara com um desses 15 quatis de todos os tamanhos, roçando meu nariz. Tentei mandá-los passar como se faz com cachorros, mas sendo bem mais selvagens, me olharam sem entender. O jeito foi sacar minha arma mais mortífera: o pandeiro! Toquei com força, largando a mão nas platinelas de zinco, bastante altas, e funcionou. O som ecoou no vale e eles logo fugiram antevendo algo terrível, anunciado por aquele barulho estranho.
Poucos dias depois, percebo uma gata preta, de olhos verdes, recém-nascida, aboletada entre as rodas do meu carro na garagem, miando sem parar. "Saudades dos meus cachorros encapetados!", pensei. No tempo em que ainda viviam por aqui, ajudavam bastante a manter distantes quatis sem cerimônia e gatos, os quais não estão entre meus animais favoritos, confesso. Mas eles fugiram para mata, há quase um ano, e nunca mais os encontrei. Então o jeito foi esperar para ver se a filhote ia embora. Final do dia e ela miando sem alívio, de fome, claro. Mas alimentá-la seria fatal pois sinalizaria uma eventual vontade de adotá-la, o que não estava nos meus planos de jeito algum. Mas o choro semelhante ao dos bebês me corta e divide o coração.
A sobrinha amante dos animais venceu nos grupos de família e me convenceu a dar atum para a danada. Minha filha mais velha executou a missão de abrir a lata e deixá-la entre os carros e esperar para ver se ela aparecia para comer. No dia seguinte, arrependimento! Ela fechou o cerco à casa, e com agilidade e nenhuma vergonha, estava quase ao mesmo tempo junto a todas as muitas portas, janelas, seteiras e até no telhado de grama da casa, querendo ficar e se insinuando para mim. Tranquei tudo e mantive minha posição. Mas, aqui dentro, me dei conta da minha ocupação da área cada vez mais questionada, enquanto o miado constante me enlouquecia. Toca a ligar para a polícia ambiental, entrar em grupos de whattsapp para doação de animais e torcer, teclando e postando freneticamente, por um final feliz.
Logo uma mensagem no privado: "é fêmea?!". E eu: "não faço a mais vaga ideia!", embora o jeito seguro com que foi ganhando território e se impondo na área me fizesse pensar que era. Mas como se sabe se um gato é macho ou fêmea? E, pior, como alguém que tem pavor desse animal faz para descobrir um segredo assim? Só a sobrinha na causa. Veio e confirmou que SIM era uma fêmea, como eu pensava. E a levou para o seu novo lar, em Taguatinga, onde tem a companhia de outras três gatinhas como ela. Quarentena também pode trazer finais felizes!
A crônica dos dias retirados do mundo pode ser tão intensa quanto a de tempos normais. Pelo menos no meu cantinho do mundo, desfilaram alguns acontecimentos curiosos. Começo pelo mundo animal. Morar na beira de um vale numa área de preservação ambiental, como diz meu arquiteto, um dos primeiros permacultores do Brasil, é lutar com a natureza pela ocupação efetiva do espaço diariamente. Em outras palavras, a ausência humana em qualquer parte da casa ou do terreno se denuncia pela presença mais acentuada (e nem sempre desejada) de algum outro ser vivo - planta, animal, inseto e por aí vai. O que faz sentido para a sustentabilidade da vida. Ninguém merece mais do que consegue usar de verdade. Primeiro sinal de presença humana reduzida nessa quarentena? Menos barulho e mais passarinhos, fato relatado antes, aliás, neste diário.
Depois vieram os quatis, cada vez mais próximos da minha varanda, devorando bananas e mamões em broto e me constrangendo durante minha prática de Ioga. Tive medo de fechar os olhos no relaxamento ou numa postura de equilíbrio e, ao abrir, dar de cara com um desses 15 quatis de todos os tamanhos, roçando meu nariz. Tentei mandá-los passar como se faz com cachorros, mas sendo bem mais selvagens, me olharam sem entender. O jeito foi sacar minha arma mais mortífera: o pandeiro! Toquei com força, largando a mão nas platinelas de zinco, bastante altas, e funcionou. O som ecoou no vale e eles logo fugiram antevendo algo terrível, anunciado por aquele barulho estranho.
Poucos dias depois, percebo uma gata preta, de olhos verdes, recém-nascida, aboletada entre as rodas do meu carro na garagem, miando sem parar. "Saudades dos meus cachorros encapetados!", pensei. No tempo em que ainda viviam por aqui, ajudavam bastante a manter distantes quatis sem cerimônia e gatos, os quais não estão entre meus animais favoritos, confesso. Mas eles fugiram para mata, há quase um ano, e nunca mais os encontrei. Então o jeito foi esperar para ver se a filhote ia embora. Final do dia e ela miando sem alívio, de fome, claro. Mas alimentá-la seria fatal pois sinalizaria uma eventual vontade de adotá-la, o que não estava nos meus planos de jeito algum. Mas o choro semelhante ao dos bebês me corta e divide o coração.
A sobrinha amante dos animais venceu nos grupos de família e me convenceu a dar atum para a danada. Minha filha mais velha executou a missão de abrir a lata e deixá-la entre os carros e esperar para ver se ela aparecia para comer. No dia seguinte, arrependimento! Ela fechou o cerco à casa, e com agilidade e nenhuma vergonha, estava quase ao mesmo tempo junto a todas as muitas portas, janelas, seteiras e até no telhado de grama da casa, querendo ficar e se insinuando para mim. Tranquei tudo e mantive minha posição. Mas, aqui dentro, me dei conta da minha ocupação da área cada vez mais questionada, enquanto o miado constante me enlouquecia. Toca a ligar para a polícia ambiental, entrar em grupos de whattsapp para doação de animais e torcer, teclando e postando freneticamente, por um final feliz.
Logo uma mensagem no privado: "é fêmea?!". E eu: "não faço a mais vaga ideia!", embora o jeito seguro com que foi ganhando território e se impondo na área me fizesse pensar que era. Mas como se sabe se um gato é macho ou fêmea? E, pior, como alguém que tem pavor desse animal faz para descobrir um segredo assim? Só a sobrinha na causa. Veio e confirmou que SIM era uma fêmea, como eu pensava. E a levou para o seu novo lar, em Taguatinga, onde tem a companhia de outras três gatinhas como ela. Quarentena também pode trazer finais felizes!
domingo, 5 de abril de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - PASSADOS 17 DIAS DE ISOLAMENTO
Tricô de espera.
Viagem longa pede tempo para se acostumar com as ondas. Dezessete dias transcorridos a bordo deste barco, sem previsão de desembarque, começo a perceber o tremendo esforço psíquico em curso de elaboração inconsciente da realidade. Um lado se mantém firme na repetição de um mantra sobre o caráter passageiro e transitório dessa situação. Basta chegar o dia em que o vírus esteja controlado e tudo voltará ao normal. Mas, cada dia mais, essa voz se parece com uma negação, resultado de um pânico crescente em mim. Uma paralisia diante da percepção mais e mais forte de que não haverá retorno possível ao antes, com tudo de bom e ruim que isso significa.
Sair de casa para fazer compras ou passar no banco ou farmácia, com máscara de pano com filtro de papel no meio e ligas de borracha nas orelhas, tornando a respiração difícil em dias quentes, deixar os sapatos usados na porta ao voltar e depois correr para pia para se lavar com água e sabão torna-se um programa cada vez menos atraente como alternativa ao isolamento modorrento em casa. Uma lesão no meu quadril direito, anterior ao vírus, da qual estou me recuperando ainda, me impede de sair para caminhadas na rua, limitando minhas saídas ao rol listado acima. Exercícios para mim, hoje, são: na varanda do meu quarto, ioga, duas vezes na semana e, no quarto da minha filha, em frente à televisão, nos outros três dias, dança aeróbica acompanhando uma playlist do YouTube. Sábado, faxina geral na casa, papinho no hangout com a família no fim da tarde e um zoom com amigas de uma vida, quando conseguimos nos juntar (sempre uma alegria!).
Falo com minha sogra-mãe que completa 90 anos em julho e está em isolamento sozinha com um cachorrinho vira-lata em sua casa em Araraquara. A filha médica, no front em Ribeirão Preto, não pode visitá-la pelo risco ao qual está exposta. A empregada vai todos os dias movida pelo afeto de filha que tem por ela, para cuidar da casa, fazer comida e um pouco de companhia. "Pensar que já tive a casa tão cheia e agora me vejo assim completamente sozinha", diz chorando ao telefone e logo se refaz e muda o rumo da prosa, como é da sua natureza, desde a perda dos dois filhos e, mais recentemente, do marido. "Eu sei que tá chegando minha hora de ir, mas com esse vírus não, né?" e ri gostoso. Percebo uma diferença importante entre o meu isolamento e o dela. Minha sogra não pensa mais no futuro, sabe bem o dela e nada pode mudá-lo, mesmo que todos desejemos que ele dure o máximo possível. Eu tenho no mínimo (espero) metade da minha vida pela frente, dois filhos ainda dependentes de mim para criar e um mar de incerteza a encarar sobre nossas vidas depois do isolamento.
E esse ponto de interrogação cada vez maior no horizonte vai semeando uma angústia em mim. Lendo um livro lindo da escritora Isabel Allende chamado "Longa Pétala de Mar", acabo me identificando com os refugiados da Guerra Civil Espanhola fugitivos de Franco e depois da II Guerra Mundial na Europa, sem saber que mundo encontrariam no desembarque no fim do mundo, que era o Chile, e se haveria possibilidade de retorno, um dia, à terra natal. E só a esperança na reconstrução de sonhos pode alimentar a alma humana nessas encruzilhadas da história na qual fomos surpreendidos (ou, eu pelo menos, fui) - tão diferente das anteriores, mais claramente delimitadas e mais concretas em seus termos.
Então a onda de hoje, domingo, em meio ao isolamento, consiste em terminar o dia, fazendo um tricô de espera e escrevendo, sempre. Buscando a esperança em cada pequeno sinal de solidariedade, de afeto, de janelas se abrindo em oportunidades ou inovações para nossa humanidade, como pão essencial nessa viagem.
Viagem longa pede tempo para se acostumar com as ondas. Dezessete dias transcorridos a bordo deste barco, sem previsão de desembarque, começo a perceber o tremendo esforço psíquico em curso de elaboração inconsciente da realidade. Um lado se mantém firme na repetição de um mantra sobre o caráter passageiro e transitório dessa situação. Basta chegar o dia em que o vírus esteja controlado e tudo voltará ao normal. Mas, cada dia mais, essa voz se parece com uma negação, resultado de um pânico crescente em mim. Uma paralisia diante da percepção mais e mais forte de que não haverá retorno possível ao antes, com tudo de bom e ruim que isso significa.
Sair de casa para fazer compras ou passar no banco ou farmácia, com máscara de pano com filtro de papel no meio e ligas de borracha nas orelhas, tornando a respiração difícil em dias quentes, deixar os sapatos usados na porta ao voltar e depois correr para pia para se lavar com água e sabão torna-se um programa cada vez menos atraente como alternativa ao isolamento modorrento em casa. Uma lesão no meu quadril direito, anterior ao vírus, da qual estou me recuperando ainda, me impede de sair para caminhadas na rua, limitando minhas saídas ao rol listado acima. Exercícios para mim, hoje, são: na varanda do meu quarto, ioga, duas vezes na semana e, no quarto da minha filha, em frente à televisão, nos outros três dias, dança aeróbica acompanhando uma playlist do YouTube. Sábado, faxina geral na casa, papinho no hangout com a família no fim da tarde e um zoom com amigas de uma vida, quando conseguimos nos juntar (sempre uma alegria!).
Falo com minha sogra-mãe que completa 90 anos em julho e está em isolamento sozinha com um cachorrinho vira-lata em sua casa em Araraquara. A filha médica, no front em Ribeirão Preto, não pode visitá-la pelo risco ao qual está exposta. A empregada vai todos os dias movida pelo afeto de filha que tem por ela, para cuidar da casa, fazer comida e um pouco de companhia. "Pensar que já tive a casa tão cheia e agora me vejo assim completamente sozinha", diz chorando ao telefone e logo se refaz e muda o rumo da prosa, como é da sua natureza, desde a perda dos dois filhos e, mais recentemente, do marido. "Eu sei que tá chegando minha hora de ir, mas com esse vírus não, né?" e ri gostoso. Percebo uma diferença importante entre o meu isolamento e o dela. Minha sogra não pensa mais no futuro, sabe bem o dela e nada pode mudá-lo, mesmo que todos desejemos que ele dure o máximo possível. Eu tenho no mínimo (espero) metade da minha vida pela frente, dois filhos ainda dependentes de mim para criar e um mar de incerteza a encarar sobre nossas vidas depois do isolamento.
E esse ponto de interrogação cada vez maior no horizonte vai semeando uma angústia em mim. Lendo um livro lindo da escritora Isabel Allende chamado "Longa Pétala de Mar", acabo me identificando com os refugiados da Guerra Civil Espanhola fugitivos de Franco e depois da II Guerra Mundial na Europa, sem saber que mundo encontrariam no desembarque no fim do mundo, que era o Chile, e se haveria possibilidade de retorno, um dia, à terra natal. E só a esperança na reconstrução de sonhos pode alimentar a alma humana nessas encruzilhadas da história na qual fomos surpreendidos (ou, eu pelo menos, fui) - tão diferente das anteriores, mais claramente delimitadas e mais concretas em seus termos.
Então a onda de hoje, domingo, em meio ao isolamento, consiste em terminar o dia, fazendo um tricô de espera e escrevendo, sempre. Buscando a esperança em cada pequeno sinal de solidariedade, de afeto, de janelas se abrindo em oportunidades ou inovações para nossa humanidade, como pão essencial nessa viagem.