Meu magriça e seu amigos de uma vida há muito tempo, direto do baú de sempre.
Registros afetivos têm me trazido de volta imagens e pedaços de mim nessa quarentena. A distância física entre as pessoas leva muita gente a vasculhar e compartilhar seus guardados de encontros suspensos por prazo indeterminado. A transmissão instantânea desses achados por grupos e redes sociais tornou possível a chegada, no mesmo dia, no meu celular, de uma linda lembrança dos nossos filhos pequenos, vindos da Paraíba, e um clique de mim, na redação do Correio Braziliense, em 2001. Juntas e misturadas com outras cenas, lembranças e histórias, essas imagens se enroscaram em volta das minhas agulhas de tricô e me levaram em viagem.
Aprendi os pontos básicos do tricô com minha avó materna, aos 9 anos. Tinha uma agulha e dois novelos (vermelhos, claro!), que tecia até encostar no chão e aí desfazia tudo - igual a Penélope da mitologia grega. É que eu não sabia entender as receitas daquele tempo, escritas numas revistas em códigos cifrados para mim e para minha avó, que tudo fazia da sua cabeça e não tinha paciência de explicar a ninguém como reproduzir. De tanto não chegar a lugar nenhum com aquilo, abandonei as agulhas pouco tempo depois.
Mas em 2013, quando em meio ao resgate dos meus não-talentos descobri a maravilha do YouTube e me tornei capaz de seguir uma receita de tricô, conclui minhas primeiras peças. Exagerada ou eufórica, quem sabe, comprei lã para uma fábrica inteira e, depois de vários gorros e cachecóis, sobrou muita coisa, guardada num saco, anos a fio. Eis que a quarentena me traz uma nova receita de gola de inverno enviada por uma grande amiga, me dando a chance de gastar os novelos guardados.
E não é que peguei gosto na coisa? Talvez não exatamente em tricotar a linha, mas o tempo. Enquanto acompanho o movimento das mãos e o trançado dos fios, contando mentalmente os pontos, entro num estado de transe. Tricotando o tempo, depois de assistir um documentário sobre o "Clube da Esquina", me peguei cismada com o fato de Lô Borges, aos 17 anos, saber o que queria fazer para o resto da vida e estar viajando para o Rio para gravar um álbum duplo, compartilhado com ninguém menos do que Milton Nascimento. Logo veio na cabeça a imagem dele explicando a origem do nome do disco que batizou o movimento dos mineiros na música. Segundo ele, era esquina mesmo, perto da casa onde morava e onde ficava o tempo todo ou, nas palavras do próprio, "militava". No sentido de bater ponto e fazer sua vida ali. Chegava, sentava no chão, tocava, compunha, os amigos vinham, batiam papo, davam palpite, contribuíam na criação. Uma esquina purinha, sem bar, sem música, sem bebida, sem nada, além do encontro de duas ruas, perto de casa.
Ainda entre a contagem de dois pontos meia e dois tricô, pensei, um tanto revoltada: "Como Lô Borges pode ter encontrado sua esquina tão cedo?". Mas continuei na minha, de fiandeira impassível, que demorou demais a encontrar a própria esquina. Aí lembrei da casa dos meus avós maternos, onde aprendi a tricotar e amar histórias. Um lugar como a casa dos Borges, onde as pessoas entravam e saíam, comiam o que tinha, contavam casos, ouviam conselhos, escreviam, costuravam ou dormiam no sofá, sem dar explicação. Eu vivia aquela atmosfera e bebia dela como se fosse algo perigoso e estranho a mim quando, em verdade, jamais foi.
Nada me dá mais prazer do que conhecer pessoas diferentes, ouvir suas histórias, mergulhar em seu mundo e, a partir disso, sonhar crônicas, contos, romances, livros infantis, projetos musicais e o que mais vier. Tricotando ainda, lembrei do meu falecido marido dizendo que tínhamos nos tornado jornalistas porque somos dois artistas medrosos, então ficamos ali, na boca do gol, sem chutar a bola, por medo do que se deseja e, mais ainda, do que se é. Engraçado termos nos encontrado assim, ao acaso, dois artistas empedernidos disfarçados de jornalistas de assuntos "sérios", enganando bem para caramba, e de eu só ter tido coragem de tomar posse dessa esquina que poderia ser dele também (quem sabe?) depois da sua morte. Tricô interessante esse de quarentena.
Querida amiga, acho que definitivamente vc encontrou seu "caminho" na escrita: a crônica. Para mim, que já li vários textos seus, é nela que vc expõe sua veia artística. Texto maravilhoso! Adorei! Quanto ao tricô, acredita que também tive minha fase tricoteira. Acho que no final da adolescência. Depois da tapeçaria, da flauta doce, veio o tricô. Não tenho mais as agulhas, mas lembro que fiz um casaco e um sapatos de bebê de tamanho desproporcional que caberia no pé de uma criança de 5 anos!
ResponderExcluirNão sabia de mais esse talento, seu! Que bom que está gostando. Um prazer saber que você existe, está na minha vida e ainda por cima, me lê. Beijos
ExcluirSempre foi artista! Mas não é por conta da escrita, do pandeiro, do tricô. É porque os artistas trazem na alma o encanto que só os artistas têm. Saudade de você! Beijo
ResponderExcluirAgora emocionei...que comentário lindo, minha amiga querida. Também tô com saudades (roxa)! Beijo
ResponderExcluirComo é gostoso ler seus textos. Tão profundos, tão suaves. E que escrita primorosa.
ResponderExcluirVontade de sentar na varanda e tricotar com você.
ResponderExcluirOh minha querida....sempre que quiser, só chegar! Beijos
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