sábado, 30 de julho de 2016

SECA


Semana difícil de digerir. Agosto ainda nem começou e parece que se respira poeira. Tosse, alergia de pele acentuada pela baixa umidade do ar, nariz entupido, dor de cabeça. Segunda-feira na fila do seguro-desemprego. Todas as agências fora do ar. Volta no dia seguinte, descobre uma pendência que impede a concessão do benefício. “A minha parte eu já fiz, querida, agora é contigo!”, lava as mãos o atendente, à primeira vista simpático. Recebo orientação de que não é necessário agendamento para o recurso, só que sim! “Cínico!”, penso, lembrando do atendente da linha acima.
A burocracia consegue transformar qualquer situação de perda num inferno além da imaginação. Estou escolada nisso. Ano passado gastei tempo e energia suficientes para moverem Itaipu resolvendo a papelada ligada à morte. E ainda não acabou. Agora estou naquelas relacionadas ao desemprego. Maravilha!
O todo poderoso Estado, que geralmente só aparece para cobrar a sua parte da feira, tem razões que a própria razão e ele mesmo, tenho certeza, desconhecem. Submeter pessoas desiludidas, desesperadas e desestruturadas por situações como morte ou desemprego a esse tipo de tratamento e exigência deveria ser proibido. Mas, pelo contrário, faz parte daqueles processos incontornáveis que todo ser humano precisa passar justo nos momentos de vulnerabilidade.
 A impotência de tentar, inutilmente, resolver uma “pendência” burocrática derruba qualquer um. Quando era mais nova e chegada a acessos de ira, perdia a cabeça e dizia que ia jogar bombas nas repartições onde passava por isso. Geralmente funcionava e, num passe de mágica, se desfaziam os óbices, antes colocados como intransponíveis. Hoje os tempos são outros e poderia ter sido presa se tivesse feito o mesmo, como terrorista ou, pior, feminista criadora de caso.
Respira. Respira. Respira. Aí vem a poeira entrando pelo nariz e queimando a mucosa interna, em surto de alergia há tempos. O desconforto vira tosse, tosse, tosse, tosse! As pessoas em volta começam a olhar, com cara de desconforto, na testa está escrito: “vai espalhar suas bactérias em outro lugar!”.  Viver realmente não é para amadores. Resolvo me retirar do recinto. Olho o céu e nenhuma única nuvem até onde a vista alcança. Ah, uma chuvinha...
Parece que se o ar ficar menos poeirento vai dissolver essa coisa mal parada no meu peito. É um misto de impotência, raiva e, principalmente, de aversão ou não aceitação. Tudo bem, não é o seguro-desemprego, embora realmente seja desgastante estar nessa situação. Também não é a seca, apesar de ela piorar a minha alergia, companheira de dois anos já. É a morte. Sim, sempre e de novo ela.
Não tenho dúvida do nível de liberdade que hoje tenho na vida, acho que nunca antes na minha história vivi uma situação assim, sem lenço e sem documento. Mas a coisa que eu mais desejo não está incluída nela e nem nunca mais estará. Parece tão injusto. Embora eu saiba que a justiça é uma criação da humanidade, por sinal muito da mais ou menos. Sei que já escrevi isso milhares de vezes aqui, mas tenho que repetir. Ele se foi. Eu não acredito. Eu não quero. Eu não aceito. E minhas entranhas se contorcem e é isso aí... Como diz uma paciente da minha irmã caçula, “é o que a casa oferece”. E nenhum palavrão, nenhum grande feito tipo roubar o fogo dos deuses, vai mudar isso. E o que me resta: aceitar!! E, de novo, se remexem minhas entranhas gritando: nem f.....o!
Como recomeço pouco é bobagem, me vejo, aos 41 anos, tendo que repensar minha vida amorosa, minhas expectativas de futuro, de velhice e, como cereja do bolo, minha profissão! Haja energia e criatividade. A questão é que vivo pelo menos metade das minhas horas, acordada ou dormindo, num universo paralelo ao espaço-tempo, onde travo um diálogo interminável com o meu amor. São perguntas para as quais ele nunca me dá respostas. Por que você não me disse nada sobre dores no peito? Você tinha dores no peito? Onde você está que não responde? O que você está fazendo agora? Como pode ter mentido tanto para mim e depois de dizer que SEMPRE estaria ao meu lado não está NUNCA? Por que você é tão danado? Tá me testando? É alguma brincadeira de mal gosto? E, principalmente, quando termina?
E o ponto é: NÃO TERMINA. Continua todo dia, a cada momento com um novo elemento, como o meu desemprego, mas segue sempre. E nesse entardecer de seca, passarinhos cantando, vejo uma saracura linda se escondendo embaixo das bananeiras. “Saracura é sinal de chuva chegando!”, dizia ele, sempre. “Será?”, penso. E lá vou eu de novo para o mundo paralelo, dos diálogos que não esqueço, e minha memória de elefante, como diz uma grande amiga, segundo ela “desmemoriada”, traz a roupa exata que vestíamos, o cheiro, o olhar, o andar, tudo nos mínimos detalhes até chegar naquela informação: Não volta mais. Droga! Viver várias vidas ao mesmo tempo cansa e nessa seca dá uma SEDE indescritível, que começa na boca e termina no coração, bem lá no fundo dele. Ou melhor dizendo...não se acaba mais.
   
GOSTOU?! #debaixodosipes

Em Brasília: à venda na Banca da Conceição, na superquadra 308 sul.

Livros por encomenda no BrasilMartins Fontes
Livros  e e-book disponíveis, para todo o mundo e também para o Brasil : Chiado Books




Nenhum comentário:

Postar um comentário