terça-feira, 28 de junho de 2016

O JACARANDÁ, O BALÃO E SÃO JOÃO


Foto: Marina Oliveira.

Uma das minhas lembranças favoritas de infância são os meus vestidos de festa junina. Minha avó materna, costureira, fazia os mais bonitos do mundo para mim. Teve um, rosa choque com babados brancos, inesquecível. Dentro dele, de tranças e pintinhas na cara, me sentia mais poderosa e bonita que a rainha da Inglaterra. Na dança da quadrilha, então, parecia que meu peito ia explodir de tanto orgulho pela minha performance e pela alegria sincera de participar daquela brincadeira.

Outras festas, como o Carnaval, as baladinhas, os grandes eventos do tipo baile de formatura, festa de casamento etc. nunca foram tão confortáveis para mim quanto o São João. Talvez porque sentisse nelas uma exigência seja de porra louquice, de exuberância, ou de beleza, maquiagem, cabelo, salto alto, etiqueta à mesa, entre outros, que sempre me deixaram tensa demais para simplesmente curtir o momento. Mas, como ouvi dia desses, a festa junina, além de muito brasileira, é altamente DESPRETENSIOSA, uma inocência interiorana, levemente cômica. Mais do que isso, lembra a vida no campo, a colheita do milho e agradece de alguma maneira à natureza pela fartura na mesa. E, como tudo o que é DESPRETENSIOSO na vida, me cai bem e me aconchega o coração!!

Casada com um homem altamente festeiro durante anos, precisei superar meus próprios limites para poder acompanhá-lo nos agitos ou realizá-los na nossa casa. Mas São João sempre foi diferente – uma festa desejada pelos dois na mesma medida e intensidade. Na fogueira, embaixo do céu estrelado e do friozinho gostoso das noites de junho, nos encontrávamos na vontade de festar. Era a nossa tradicional “festa da julina”, como costumava dizer o nosso magriça quando novinho.

Em 2015, não teve São João na nossa casa. Não dava. Olhava o fogão, via as panelas de caldo no fogo e ele rindo, comendo canela com canjica, achando graça de si mesmo pelo excesso, numa jaqueta jeans velha e escura, com os punhos dobrados para fora, como era sua marca fashion registrada, visual tradicional de todas as festas noturnas. Um casaco quase andante de tão usado e do qual sinto uma saudade imensa. Mas felizmente tenho duas irmãs nascidas em junho, a mais nova delas também muito festeira e, em 2016, resolvi retomar, despretensiosamente, essa tradição.

Foi um arraial de aniversário para minha irmã, com poucos convidados, não aquele monte de gente que costumava ocupar todos os espaços da nossa casa sem sala e ir e vir ao longo da nossa festa da julina. Também não teve fogueira porque, no final de 2014, a família ganhou um novo membro, muito levadinho e amado aqui em casa, mas perigoso demais para arriscar uma queimadura num minuto de descuido. Um anjinho que preencheu com sua alegria e carisma um grande espaço de ausência na minha vida e dos meus dois filhos, no ano que passou. Mas houve um lindo casamento na roça até então inédito.

Minha prima, que vive em Florianópolis, tia do anjinho levado, ficou noiva de um rapaz muito querido por todos nós, inclusive por meu falecido marido. Um homem de coração bom, que é a qualidade mais importante em qualquer parceiro no amor. E resolvemos aproveitar a ocasião para surpreendê-los com um singelo e também DESPRETENSIOSO casamento na roça, abençoando a escolha dos dois e dando boas-vindas ao novo integrante do clã.

Fizemos flores de papel crepom durante duas semanas, seguindo as receitas do maravilhoso You Tube, onde se aprende de um tudo neste mundo!! E aproveitamos uma estrutura de madeira do quintal para montar o altar. Um grande amigo da minha irmã, parte importante do nosso suporte emocional nos primeiros e duríssimos dias de luto e agora nosso amadinho também, veio direto do Rio Grande do Sul para nos ajudar com suas habilidades e ferramentas desenvolvidas no melhor estilo Magayver (um herói do seriado Profissão Perigo, para quem não conhece) e sua gargalhada fácil. E decorar a festa, pendurando as bandeiras, que continuarão no quintal até desbotarem. Outra tradição desta casa, criada para satisfazer o nosso magriça, que não gosta até hoje de tirar os enfeites.

No centro do terreiro está o Jacarandá do Cerrado, onde penduramos o balão colorido de São João. Renascido em nosso quintal, depois que limpamos o terreno sem usar máquinas – numa tentativa de resgatar os restos de vegetação dormentes embaixo do capão desmatado que era esse lote quando começamos a construção –, o Jacarandá do Cerrado hoje é mais alto que a própria casa. Por ele, também passaram metros de bandeirolas coloridas para ornar a festa. Foi uma linda noite, com lua, estrelas, afeto e bastante frio.

São sementes DESPRETENSIOSAS de recomeço – que não significam nem ruptura, nem fim e muito menos esquecimento, só passagem para um novo ciclo, no qual as sementes do amor plantado trazem os novos frutos, as novas uniões, os novos descendentes da família e os novos laços de afeto. Mas a força ancestral da terra, que nos sustenta e um dia nos recolhe para repousar eternamente, sustenta nosso caminhar e nos lembra que nascer, amar, morrer e, sim, RECOMEÇAR são processos naturais. Simples, profundos e DESPRETENSIOSOS como a vida e seus ciclos infindáveis de mudança e renovação.

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quarta-feira, 8 de junho de 2016

GRIPE


Foto: Marina Oliveira. Aquiraz, Ceará, janeiro de 2007.

Todo ano, no começo da seca, tem uma gripe, mas as duas últimas foram diferentes. Não pelos sintomas de coriza, dores na cabeça e no corpo, moleza, mas pela fragilidade que me trouxeram. Sempre detestei ficar doente, embora durante muito tempo tenha sido uma forma de manifestar sentimentos e principalmente o atingimento do meu limite físico e emocional, que eu não conseguia ler e muito menos expressar de outra maneira. Como se perceber a existência de limites na vida fosse igual a sentir-se mal e acabasse resultando no adoecimento do corpo.

A gripe atual, que me trouxe uma otite no ouvido direito de brinde, é a que me leva a escrever, como o resfriado do ano passado, ampliou a fragilidade que tem feito parte dos meus dias muito mais do que eu gostaria desde a morte do meu marido. Desde os 12 anos não tinha dor de ouvido e havia esquecido desse mal-estar constante num lugar entre a orelha e o pescoço, e como essa sensação se irradia para os ombros, as costas e a base do crânio. Passei a noite lutando para achar uma posição para a cabeça que não fosse dolorida. Acordei pensando em como a gente só se dá conta de que nosso espírito é “prisioneiro” do corpo quando alguma parte dele nos incomoda. Imediatamente, comecei um novo diálogo com a morte, essa senhora que tem sido minha companheira mais ou menos constante ultimamente.

Tenho uma tia muito querida, em Goiânia, espírita praticante, que me disse há uns meses, quando estivemos juntas, que meu marido deve estar se divertindo muito desde que desencarnou. "Curioso e inteligente como sempre foi, certamente está fazendo descobertas interessantíssimas pelo universo, livre, viajando no tempo e no espaço sem nenhuma restrição!”, afirmou, verdadeiramente animada com a ideia. Na ocasião, achei o comentário consolador de um jeito divertido e completamente inusitado, o que já é algo positivo por si só, nesse contexto de luto.

No show de 70 anos do Gilberto Gil, em 2014, fomos ao Teatro Nacional em Brasília. Na parte mais intimista do espetáculo, só ele, o violão e um holofote branco de iluminação, ressaltando sua fronte bem grisalha, cantava algo parecido com “estou aqui diante da morte, e o que me preocupa não é o que vem depois, mas ter que participar desse momento, só eu e ela.” Lembro de achar engraçada a cena porque Gil mencionava uma vontade de ir ao banheiro naquela hora derradeira, e lembro também de ter tomado uma bronquinha do meu acompanhante por isso, pois ele achou de tremendo mau gosto o número todo e fechou a cara quando achei graça.

Fico pensando se era só uma reação de corintiano supersticioso, que bate na madeira quando ouve o nome do adversário para isolar o azar, o que era bem a cara dele, ou se havia algo mais naquela reação ao número do show. Como alguém que anda pensando nessa “passagem”, como dizia minha avó materna para não pronunciar o nome da própria, com muito mais seriedade e concretude do que eu podia suspeitar na ocasião.

Sei que jamais saberei qual a opção verdadeira e que hoje, do ponto de vista dele, que já fez sua passagem, não faz qualquer diferença. Mas quem fica do lado de cá não consegue resistir a tentar encontrar a resposta mais “provável”. Afinal, eu estive tão perto dela, e sigo sem ter a menor pista do que de fato se passou entre a morte e o meu amor naqueles instantes derradeiros.

E quando o meu corpo me lembra que tem limites e dói ou passa por qualquer tipo de contratempo como uma gripe ou uma otite, a impotência da morte me atinge como um raio.  Me lembra que, por mais que eu tente acomodar essa perda, elaborando ideias e sentimentos de todo tipo, ela aconteceu à minha absoluta revelia. É assim desde que o mundo é mundo e continuará a ser por mais que a tecnologia traga a alguns a ilusão de controlar ou adiar a visita da morte. E quando eu fizer a minha passagem definitiva, ele não estará ao meu lado como eu estive ao dele e, talvez na hora H, isso não faça a menor diferença. Mas pensar nisso enquanto estou doente faz revirar meu coração e atiça os fantasmas que rondam todo recomeço INDESEJADO e inesperado na vida.

Perdida nessas divagações, enquanto espero o antibiótico fazer efeito e restabelecer meu estado normal de saúde e, com ele, diálogos mais serenos com a Sra. Morte e minha perda, penso que morrer talvez seja só deixar de ter limites ou ultrapassá-los de uma vez por todas. E, quando vejo as coisas por esse ângulo, tenho que concordar com a visão animada da minha tia querida sobre a existência atual do meu amor porque, afinal, se havia uma coisa com a qual  ele jamais soube, gostou ou quis lidar foi com limites.

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