Foto: Marina Oliveira. Aquiraz, Ceará, janeiro de 2007.
Todo ano, no começo da seca, tem
uma gripe, mas as duas últimas foram diferentes. Não pelos sintomas de coriza,
dores na cabeça e no corpo, moleza, mas pela fragilidade que me trouxeram.
Sempre detestei ficar doente, embora durante muito tempo tenha sido uma forma
de manifestar sentimentos e principalmente o atingimento do meu limite físico e
emocional, que eu não conseguia ler e muito menos expressar de outra maneira.
Como se perceber a existência de limites na vida fosse igual a sentir-se mal e
acabasse resultando no adoecimento do corpo.
A gripe atual, que me trouxe uma otite
no ouvido direito de brinde, é a que me leva a escrever, como o resfriado do
ano passado, ampliou a fragilidade que tem feito parte dos meus dias muito mais
do que eu gostaria desde a morte do meu marido. Desde os 12 anos não tinha dor
de ouvido e havia esquecido desse mal-estar constante num lugar entre a orelha
e o pescoço, e como essa sensação se irradia para os ombros, as costas e a base
do crânio. Passei a noite lutando para achar uma posição para a cabeça que não fosse
dolorida. Acordei pensando em como a gente só se dá conta de que nosso espírito
é “prisioneiro” do corpo quando alguma parte dele nos incomoda. Imediatamente, comecei
um novo diálogo com a morte, essa senhora que tem sido minha companheira mais
ou menos constante ultimamente.
Tenho uma tia muito querida, em
Goiânia, espírita praticante, que me disse há uns meses, quando estivemos
juntas, que meu marido deve estar se divertindo muito desde que desencarnou.
"Curioso e inteligente como sempre foi, certamente está fazendo
descobertas interessantíssimas pelo universo, livre, viajando no tempo e no
espaço sem nenhuma restrição!”, afirmou, verdadeiramente animada com a ideia.
Na ocasião, achei o comentário consolador de um jeito divertido e completamente
inusitado, o que já é algo positivo por si só, nesse contexto de luto.
No show de 70 anos do Gilberto
Gil, em 2014, fomos ao Teatro Nacional em Brasília. Na parte mais intimista do
espetáculo, só ele, o violão e um holofote branco de iluminação, ressaltando
sua fronte bem grisalha, cantava algo parecido com “estou aqui diante da morte, e o que me preocupa não é o que vem
depois, mas ter que participar desse momento, só eu e ela.” Lembro de achar
engraçada a cena porque Gil mencionava uma vontade de ir ao banheiro naquela
hora derradeira, e lembro também de ter tomado uma bronquinha do meu
acompanhante por isso, pois ele achou de tremendo mau gosto o número todo e
fechou a cara quando achei graça.
Fico pensando se era só uma reação
de corintiano supersticioso, que bate na madeira quando ouve o nome do
adversário para isolar o azar, o que era bem a cara dele, ou se havia algo mais
naquela reação ao número do show. Como alguém que anda pensando nessa
“passagem”, como dizia minha avó materna para não pronunciar o nome da própria,
com muito mais seriedade e concretude do que eu podia suspeitar na ocasião.
Sei que jamais saberei qual a
opção verdadeira e que hoje, do ponto de vista dele, que já fez sua passagem,
não faz qualquer diferença. Mas quem fica do lado de cá não consegue resistir a
tentar encontrar a resposta mais “provável”. Afinal, eu estive tão perto dela,
e sigo sem ter a menor pista do que de fato se passou entre a morte e o meu
amor naqueles instantes derradeiros.
E quando o meu corpo me lembra
que tem limites e dói ou passa por qualquer tipo de contratempo como uma gripe
ou uma otite, a impotência da morte me atinge como um raio. Me lembra que, por mais que eu tente acomodar
essa perda, elaborando ideias e sentimentos de todo tipo, ela aconteceu à minha
absoluta revelia. É assim desde que o mundo é mundo e continuará a ser por mais
que a tecnologia traga a alguns a ilusão de controlar ou adiar a visita da
morte. E quando eu fizer a minha passagem definitiva, ele não estará ao meu
lado como eu estive ao dele e, talvez na hora H, isso não faça a menor
diferença. Mas pensar nisso enquanto estou doente faz revirar meu coração e atiça
os fantasmas que rondam todo recomeço INDESEJADO e inesperado na vida.
Perdida nessas divagações,
enquanto espero o antibiótico fazer efeito e restabelecer meu estado normal de
saúde e, com ele, diálogos mais serenos com a Sra. Morte e minha perda, penso
que morrer talvez seja só deixar de ter limites ou ultrapassá-los de uma vez
por todas. E, quando vejo as coisas por esse ângulo, tenho que concordar com a
visão animada da minha tia querida sobre a existência atual do meu amor porque,
afinal, se havia uma coisa com a qual ele jamais soube, gostou ou quis lidar foi com
limites.
GOSTOU?! #debaixodosipes
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Lembro de ter encontrado com vocês no show de Gil e também me impressionou muito a performance que você mencionou. Meu entendimento não tinha sido exatamente esse, mas a verdade é que é possível e consolador interpretar como sua tia. O melhor de tudo é que ninguém pode provar o contrário!!!! Seu texto mais uma vez merece os parabéns. Como é possível encontrar tanta inspiração numa gripe???
ResponderExcluirSimone,
ResponderExcluirvocê sempre tão generosa nos seus comentários. Obrigada! Pensar dessa forma é tão consolador, né? Talvez seja uma características mais fortes da família da minha mãe. Já passaram por tantas tragédias, mas guardam uma leveza e um senso de liberdade incrível. Beijos