Diários dos últimos anos.
Dia de pedreira, lidando com o misto de sentimentos conflitantes trazidos por esse isolamento. O sétimo dia tem sempre um significado de terminar de sepultar quem partiu. A essa altura, a irreversibilidade da morte se estabelece. Talvez seja a angústia de admitir a permanência desse estado de vida em suspensão o que despertou, ontem, em mim, uma estranha sensação. Explico. A bateria do meu celular arriou e ficar isolada sem esse aparelhinho mágico seria insuportável. Saí, então, para buscar um telefone de reserva da minha irmã e levei os filhos junto para uma voltinha, depois de tantos dias, percebendo a tensão crescendo neles também nesse confinamento.
Foi tão esquisito. Foi como fazer algo muito errado e o sentimento conhecido como culpa me invadiu, assim que entramos no carro. Ao dar voz a isso, meu filho, no seu pragmatismo de pessoa de exatas, disse logo: "Mas você está mesmo quebrando uma regra". E eu calei. "Mas tinha uma "razão" para isso!" Pensei comigo, em defesa própria. No caminho, os três observavam o movimento de ida e vinda de carros. E constatamos muito mais gente circulando do que o esperado, e a luz vermelha acendeu logo porque sabemos que isso não é nada bom.
E talvez seja esse o lado feio das coisas que vive em nós, mencionado no dia 6 deste diário. Quem não quer fingir que a verdade é mentira para seguir a vida e pronto?! O problema está em CEDER a essa força interna e embarcar numa viagem maluca do tipo que levou Nero a atear fogo em Roma. E não estamos muito longe disso, infelizmente, neste sétimo dia.
No Brasil, além do vírus, há uma volatilidade constante do ambiente político, na qual estamos mergulhados há tempos, mas que ganha contornos dramáticos numa hora assim. Mas, na fronteira entre a civilização e o justiçamento, na qual nos habituamos a tocar adiante, as escolhas individuais têm um peso gigantesco. É injusto, quase medieval, mas chegamos ao ponto onde a consciência de cada um precisa ser forte o bastante para iniciar um processo coletivo de mudança, por uma simples questão de calamidade pública.
O hábito de escrever diários desde os dez anos de idade, primeiro de forma esporádica e, a partir dos 22 anos, quase todo dia, me ensinou que refletir sobre nós mesmos e nossa interação com a vida, enquanto se caminha, faz muita diferença. Como se a semente de um entendimento meio difuso de ontem, quando registrado, recebesse uma poderosa ajuda para se revelar por completo, nos alimentando de uma consciência extra sobre a nossa parte na trajetória. Esse exercício deixa rastros claros e preciosos das forças em conflito constante dentro de nós, e como atuam nos levando, em vários momentos, a PREFERIR nos agarrarmos a qualquer mentira, e quanto mais mágica, mais atraente, porque nada exige mais esforço, trabalho pessoal e abertura do que a verdade. Pior. Embora seja a única via verdadeira de transformação, ela não traz garantia de resultado, só de processo e, no fundo, a vida não passa disso, um longo processo com um ponto final mais ou menos abrupto e sempre inesperado.
Talvez seja essa atividade insana da minha parte, em registros privados - fotografei só os diários últimos cinco anos para ilustrar o post -, que me forjaram escritora. Minha voz foi encontrada nessa lida diária comigo mesma, tendo no papel e na caneta instrumentos para me ver melhor, e isso inclui o pior de mim. Nisso descobri que ninguém pode escolher a verdade sem encarar o pior de si, da humanidade e de quem se ama. E quanto mais grave o momento, mais precisamos ser capazes de sustentar o olhar e ganhar consciência para seguir a estrada mais difícil, no caso atual: ficar em casa isolados, sem saber até quando, embora cada fibra do nosso corpo e espírito, ou pelo menos do meu, peça para voltar à vida normal agora.
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