quarta-feira, 4 de novembro de 2020

 DIÁRIO DE QUARENTENA (A PERDER DE VISTA) - EXU NA ENCRUZILHADA


                Foto do baú da tia coruja, de quatro anos atrás.

Viver à espreita, como se cada segundo pudesse trazer algo importante à nossa encruzilhada pessoal e nos tirar dela enfim. É a mensagem de Exu, meu orixá de devoção no momento. Depois de quase oito meses em isolamento social, em alguns momentos mais e em outros menos restritivo, desempregada em caráter oficial desde junho e com um ano novo chegando arrastado, com cara de mais do mesmo, só ele mesmo em suas contradições e multiplicidade para abrir os caminhos. Ouvindo a "pregação macumbeira" do podcast "Benzina", por indicação da minha irmã caçula, há um mês começou minha redescoberta e mergulho em Exu.

Rei do incriado ou do que "existe sem ter sido criado", segundo o dicionário. "E pode isso, Arnaldo?", ouço um grande amigo gozador me perguntando enquanto escrevo. Pode. Mas a gente precisa conceber o caos como berço e fonte maior de toda criação, como fazem as cosmogonias africanas, onde Exu reina em toda e qualquer encruzilhada. E nela ele pode trancar a rua, como quem bloqueia o fluxo adiante, numa perspectiva negativa sobre seu papel neste plano físico, ou como quem nos interpela e impede de seguir no piloto automático, abrindo nossos olhos para enxergar TUDO o que nos espreita ao redor de cada uma delas, sem filtro, máscara ou óculos cor-de-rosa.

Na minha encruzilhada de hoje, vejo um mar de possibilidades incriadas  borbulhando dentro em mim, numa atividade interna quase insana, duelando com o barulho ensurdecedor de vozes das trevas na política, no meio ambiente, na economia, nos relacionamentos e na cultura, querendo me fazer acreditar que aqui só cabem eles ou pessoas conformadas ao modelo que impõem, e os incomodados como eu que se mudem ou desapareçam. 

Nos momentos mais épicos dessa luta inglória, sorrio e pisco para Exu. E ele me conforta lembrando que ninguém é dono da encruzilhada além dele, que tudo aceita e a todos recebe da mesma forma, com sua eterna pergunta matreira: "Esta encruzilhada te pertence?". Porque ele sabe a resposta e elas são múltiplas. Mas cada um precisa escolher a sua e estar ciente disso, para isso elas existem e se sucedem.

Exu, em sua deliciosa ambiguidade, previne também contra alimentar o conforto na encruzilhada como algo positivo, enfatizando que ele pode, ao contrário do que parece, anunciar tragédia. Porque quem perde a capacidade de estar à espreita e adormece sonhando tramas e enredos alheios pode perder a própria vida e sua capacidade de criar a partir do caos de todo dia. 

Nessa lógica, relaxo porque, em quase oito meses, poucas vezes me senti assim confortável e segura. Ao contrário, acordo com esperança de ter achado um caminho para viver da música, da escrita e das ideias e devaneios que povoam meu coração, sem precisar vestir máscaras de poder e nem moldar minha vida a modelos de sucesso ou de felicidade de qualquer tipo. E logo depois me deparo com o isolamento social, com a crise econômica e política no Brasil, com a valorização absurda das pessoas que ganham muito dinheiro, recebem muitos prêmios, trabalham demais, se divertem de menos e só falam de coisa "séria", em detrimento de todas as outras formas de ser e de estar no mundo!! 

Mas se a encruzilhada é de todos e de nenhum além de Exu, tenho chance de instaurar minha própria criação também. Porque, em meio a todas as dúvidas, me resta uma certeza cada vez maior: esta encruzilhada eu ESCOLHI de olhos bem abertos e ela só ampliou minha capacidade de estar à espreita e, quando por aqui passarem as sementes das próximas, saberei seguir com elas.