Texto produzido em 2009.
Ela escreve para digerir a existência, fazer sentido do que lhe parece insondável e, por isso mesmo, assustador. Assim é Clarice Lispector em seus escritos que brotam de dentro para fora, impressões fundas, rasas, alegres, tristes, tão variadas quanto todos os adjetivos, de todas as línguas existentes. Jogo de sombras e luz que a vida lança sobre homens e mulheres, na medida em que corre.
Ela escreve para digerir a existência, fazer sentido do que lhe parece insondável e, por isso mesmo, assustador. Assim é Clarice Lispector em seus escritos que brotam de dentro para fora, impressões fundas, rasas, alegres, tristes, tão variadas quanto todos os adjetivos, de todas as línguas existentes. Jogo de sombras e luz que a vida lança sobre homens e mulheres, na medida em que corre.
Mas escrever para viver é
diferente de viver de escrever. A primeira opção está ligada a uma necessidade
profunda de algumas criaturas de dar sentido a sentimentos, experiências,
realidades. Faz parte de um esforço de autoconhecimento e cura da solidão mais
agreste, da dor mais profunda e do prazer mais intenso. A segunda pressupõe uma
exposição dolorida à crítica alheia, ao julgamento estético e de conteúdo, à empatia
com os leitores e seus interesses, à máquina de produção que paga os salários,
aquece o mercado editorial e resulta em best-sellers
ou fracassos retumbantes.
O repórter que aspira a escritor
se esforça para retocar a realidade dos fatos para que cheguem mais perto da
ficção. Busca arrancar lágrimas, risadas ou indignação a partir dos
ingredientes que encontra na rua, nos relatórios, nos gabinetes e nas aspas de
alto impacto – muitas vezes esquentadas no micro-ondas da redação. Mas se
esconde por trás da imparcialidade, como se o seu ofício de quase-escritor
pudesse passar despercebido o tempo todo. Fica sempre no quase, no projeto de
literato, ou de autor de verdade, preso às amarras dos fatos e da maneira como
são produzidos pela indústria da notícia.
Nessa eterna tensão entre
realidade e ficção, o repórter-escritor corre contra o tempo do fechamento
implacável dos jornais diários – e contra a mediocridade dos textos
pré-moldados pelas cinco perguntas básicas do jornalismo ensinado na escola: o
que, quando, onde, como e por quê? Nos
furos deixados pela fórmula clássica, escorre o mais pungente e verdadeiro da
realidade que nos cerca, da existência das pessoas e do próprio repórter.
Jornalismo e literatura parecem inconciliáveis, embora estejam sempre
namorando.
O ficcionista se expõe, sem a
rede de segurança dos fatos que embasam a narrativa jornalística, à crítica
implacável e ao fracasso. Mesmo assim segue preso às restrições impostas pelo
interesse atual do público leitor neste ou naquele gênero, nesse ou noutro tema,
na febre do momento do mercado editorial. A libertação pretendida por quem
escreve para viver parece, portanto, inalcançável aos que vivem de escrever.
Penso em escrever em um blog, e me
sinto como se fosse tirar a roupa em público, na internet. Hoje está na moda o
escrito intimista que revela os detalhes da vida mais particular dos autores, que
vivem de relatar suas jornadas de autoconhecimento. A minha começou quando
ainda era garota e imaginava que um dia teria vivido o suficiente para poder escrever
um livro. Na minha cabeça de então, só quem tinha experiência de vida poderia
ser autor, seria uma espécie de pré-requisito necessário ao ofício. Pensava que
depois dos 30 anos, com certeza teria adquirido bagagem suficiente para iniciar
essa viagem. Mas já estou às portas dos 36 – e continuo inédita. Pior, cada vez
mais insegura a respeito do tal livro cujo tema segue sendo um grande ponto de
interrogação.
Lendo “Outros Escritos” de
Clarice Lispector – presente do meu amor –, não consigo deixar de me
identificar com a autora, que começou a escrever por necessidade absoluta, como
eu. Lembro dos meus primeiros diários, entre os nove e os dez anos, refúgio no
qual buscava sentido para aplacar os fantasmas contra os quais lutava no dia a dia,
sem ter a coragem de contar a ninguém sobre eles. Na solidão profunda de quem
teme ver sua imagem destruída por revelar aos outros, mesmo os mais próximos e
amados, as fraquezas que rondam sua alma, encontrava no hábito diário da
escrita um porto seguro. Local retirado do mundo, no qual é permitido explorar
todas as coisas, sem medo de retaliações ou críticas, sem limites. É isso que
chamo de escrever para viver, buscar um pedaço de papel para organizar
pensamentos, desabafar sentimentos e, principalmente, encontrar a libertação
dos tais fantasmas ou macaquinhos no sótão, como diria o menino maluquinho de
Ziraldo. Um ato mágico para criaturas que precisam digerir a existência porque
sentem que, se não o fizerem, serão destruídas por ela. Daí minha identificação
com Clarice.
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Agora um parêntese sobre o amor –
o meu. Um dia chegou em casa e disse que tinha comprado um presente para mim. Despretensiosamente,
como é bem do seu feitio. Logo na capa do livro, uma poesia toda rabiscada
sobre “o peso da palavra não dita, prestes quem
sabe a ser dita...” “Danado! Como ele sabe?”. Senti que ele desnudava minha
alma, de uma maneira insuspeita. Que, na sua rotina corrida e na sua aparente
distração, me conhecia profundamente, apesar da minha dificuldade atávica de
deixar o outro entrar e saber quem sou de verdade. Uma onda de gratidão me
invadiu junto com uma grande descoberta: o amor nos liberta da necessidade de
buscar refúgio num pedaço de papel. Eureca! Há outra maneira mais prazerosa e
COMPARTILHADA de digerir a existência. Desde então, penso que não preciso mais
escrever para viver, me sinto finalmente capaz de simplesmente viver. O negócio
é que continuo gostando de escrever. Será esse o “momento mágico” que minha
imaginação de menina criou quando a bagagem está finalmente pronta para se
começar a viagem da autora? A seguir
cenas dos próximos capítulos!
GOSTOU?! #debaixodosipes
GOSTOU?! #debaixodosipes
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