terça-feira, 19 de julho de 2016

NINHO



Os passarinhos constroem os ninhos deles sem mãos, só com a incrível habilidade do bico e com os materiais que encontram: arame, plástico, barbante, folha, palha... O nosso é feito de histórias entrelaçadas unindo vivos e mortos numa trama de amor – a força mais primitiva e poderosa que existe, como diz o mago Dumbledore a certa altura da saga de Harry Potter. Claro que existem paredes, janelas, chão, portas, como em outra casa qualquer. Mas o que mantém essa estrutura é um material bem diferente.
A base dessa nossa construção começou com o reconhecimento do terreno: um grande capão desmatado na beira do vale, por onde desciam águas de corredeira na época das chuvas torrenciais de janeiro. Depois, os furos no chão para os alicerces, com faísca saindo do solo a uma profundidade de menos de dois metros.  Aí veio o artesão da madeira, responsável por armar a estrutura, conhecido por ter trabalhado nas obras do famoso arquiteto Zanine. O problema era entender o que ele dizia! Falava com a gente como se estivesse brigando, e parecia o desenho do Snoopy, na hora que os adultos dizem alguma coisa, e a gente não consegue pescar uma palavra sequer... Teve que escrever o preço do serviço no papel.  Faltava caixa para pagar, olhamos para fora, vimos o meu recém-adquirido carro velho, um Uno verde 1997. “Quer?”, perguntei. Pegou a chave, balançou a cabeça e foi embora. Negócio fechado. Assim começou a obra.
Aí veio a odisseia das paredes de taipa. Feitas de treliça de madeira com barro amassado, provocaram uma grande discussão no condomínio. As pessoas que vinham de diferentes regiões do país onde se faz casa de taipa tinham conceitos diversos sobre como ela deveria ser amassada e, principalmente, sobre o ponto certo do barro. Tenho certeza que tem parede de taipa para todo gosto por aqui, dependendo de quem ganhou a discussão do momento! Não existem duas totalmente iguais. E meu amor, desesperado, olhando o prumo e dizendo que estavam tortas...E eu, querendo passar adiante, brigava com ele, argumentando que ele precisava mudar seu conceito sobre paredes retas.
E o que dizer do nosso mestre de obras argentino? Formado em Economia, filho de diplomatas, falava quatro línguas, mas só encontrava a paz interior no trabalho manual. Veio parar no córrego do Urubu, em Brasília, e foi o responsável por supervisionar todo o trabalho. “Tá me compreendéndo?”, dizia no seu sotaque portenho carregado. E quando havia um problema qualquer, independente da sua gravidade, suspirava profundamente, como quem ouve uma grande tragédia em verso de tango. Adorava luzes neon e certa feita sugeriu que nós colocássemos algumas na palafita sobre a qual erguemos o primeiro andar. Eu até gostei da ideia, mas o meu companheiro, discretíssimo, desaprovou completamente a sugestão só com os olhos.
O pedreiro principal era baiano e, quando chamamos um mestre goiano para fazer os acabamentos finais de azulejo e o cimento queimado, as histórias se multiplicaram. “Ah baiano! Tu ia sofrer se trabalhasse comigo!”, ameaçava, rindo do alto do seus 1,60 cm, no máximo. “Dá gosto de entrar nessa casa, pé direito alto!  Casa com menos de 2 metros de pé direito eu nem piso dentro”, repetia.
No dia de bater a laje, meu marido fez questão de acompanhar o processo do começo ao fim. Quando me encontrou, todo eufórico, me pegou nos braços e tirou do chão, me rodando no ar. “Agora sim tenho um chão onde cair morto!”, falou. E soltou uma risada gostosa. Depois teve a mudança e os movimentos constantes para acomodar novas configurações na nossa vida familiar, sempre muito dinâmica. A casa não tinha sala e até hoje não tem, então resolvi improvisar e transformar a copa, inicialmente aberta, num lugar para ver televisão, ao lado da cozinha. Usei vidro e persianas.  Depois, veio o nosso magriça, que não tinha quarto na planta original, que, por sinal, já sofreu vários ajustes sem ter sido completamente concluída até o presente momento.
Joga o escritório para o corredor. Faz faxina geral para jogar fora coisas o suficiente para fazer caber o novo morador. Eu com um barrigão enorme, tentando convencer meu marido a doar gibis antigos, papéis diversos e ele sofrendo a cada vitória minha! E minha sogra, desolada: “Minha filha, mas vai dar tanta coisa? Não dá para ir ajeitando tudo, empurrando as coisas ao longo das paredes?!”. E eu mal tinha paredes para colocar as estantes... Ríamos todos, ela inclusive. Depois veio o segundo módulo da construção, nossa suíte master, na época em que o filho mais velho dele veio de São Paulo para morar conosco. E o magriça e sua cama migrando de um quarto para o outro até estacionar no nosso por um bom tempo. Em 2010, decidi fazer a reforma agrária no maior quarto da casa e dividi-lo para uso dos dois meninos.
Mas as melhores histórias e as mais fundamentais na estrutura desse ninho têm personagens há muito falecidos, mas vivos nos casos mais repetidos por aqui. Os avós italianos dele, os meus, de um lado piauienses e de outro mineiros filhos de imigrantes italianos e árabes. Até meu bisavô careca frequenta a roda de histórias por aqui, principalmente com a sua lendária proposta de compra de uma terra no interior de Goiás, que encantava meu marido. “Primeiro ano, nada. Segundo ano, nada. Terceiro ano (pausa dramática), vamo ver”. Isso é que é negócio! E minha avó materna, bem velhinha, nos visitando, sendo ajeitada na cadeira pelo meu amor. De repente, solta um suspiro e diz, em momento de glória: “Quem diria que um dia eu teria um famoso jornalista aos meus pés?”.
E hoje, nosso aniversário de 13 anos de casamento, quero recordar uma história daquele dia, quando tive minha primeira experiência de ter toda a família italiana dele reunida na nossa casa. Havia pelo menos uns 20 deles, quando a tia-mãe e o tio-pai chegaram no próprio dia da celebração, ela com os cabelos já escovados para a festa com as pontas para fora. Entram casa adentro e perguntam, alto: “Quem é a menina do Ju?”. Quando me identificam, pegam nas minhas bochechas, batem na minha cabeça, me chamam de boneca. E eu, atônita, desacostumada com aquele jeito intenso e barulhento, que faz a gente sentir como se até as moléculas do ar vibrassem ao nosso redor, fugi para a casa do meu pai para esperar a hora de ir para o salão me arrumar. E, quando saio da garagem, olho para trás, para a nossa escada da frente, e lá estão eles, todos, cada um num degrau como quem pousa para aquelas fotos de família antigas, acenando e sorrindo, ao mesmo tempo, lindos!
Também não posso esquecer do profundo sentimento de minha sogra por todos os seus descendentes homens terem puxado os genes do pai e ficado carecas!! No nosso primeiro encontro, fez questão de frisar que não tinha responsabilidade pelo fato dos filhos terem perdido os cabelos. E para provar, abriu a carteira e tirou fotos de vários homens com fartos topetes, seus irmãos. No dia do velório do seu filho mais velho, estava com ela, na sala ao lado da capela, quando entra o marido de uma sobrinha e ela, sentada, parecia estar em outra dimensão olhando para ele. "O que foi? Tudo bem?", perguntei. E ela: "Deve ser até pecado pensar nisso hoje. Mas você viu como o implante de cabelo dele ficou perfeito!?". E eu nunca esqueci disso e tenho certeza de que é essa sua incrível capacidade de se engajar com a vida que a fez seguir em frente depois de perder dois filhos tão amados e de continuar a ser essa figura, personagem perfeita para as melhores histórias do mundo. Aquelas de gente como a gente, que passa bons e maus momentos, mas sabe se divertir e tirar uma onda de si próprio e da vida. Foi nessas histórias que nos encontramos e puxando seus fios, as unimos para formar esse ninho, de onde ele saiu direto para o cemitério como sempre foi sua vontade.
E tanto tempo depois de cada uma dessas histórias, e exatamente um ano e meio depois de ficar viúva, me vejo contar os casos do meu amor como personagem, o tempo inteiro, para os meus filhos, para amigos, para familiares e até para vocês, meus queridos leitores... As favoritas, mais repetidas, claro! Essas histórias que o mantém vivo e parte dessa trama que estrutura nosso ninho, entrelaça nossas famílias e afetos, estejam seus personagens encarnados ou não. Elas certamente irão resistir ao tempo e até à morte, muito além da nossa passagem por aqui. 

GOSTOU?! #debaixodosipes

Em Brasília: à venda na Banca da Conceição, na superquadra 308 sul.

Livros por encomenda no BrasilMartins Fontes
Livros  e e-book disponíveis, para todo o mundo e também para o Brasil : Chiado Books




                

Nenhum comentário:

Postar um comentário