Foto: Ultra Alliens na Avenida Paulista, por Davi Buarim. Junho de 2017.
Parece um rio, mas é uma avenida.
A Paulista em dia de feriado – fechada para o trânsito dos carros, inundada de
gente circulando – pulsa de vida, de diversidade, de histórias. Pisar nesse
chão pela primeira vez – a passeio, depois da morte do meu marido, na companhia
dos nossos filhos – fez correr em mim um rio de sentimentos, memórias e elaborações.
A Paulicéia Desvairada que, depois da minha Brasília, certamente é a cidade
mais importante na minha história.
Nela, dei os primeiros voos
autônomos da vida adulta, depois de entrar na universidade e, mais tarde,
consolidei projetos pessoais e profissionais importantes. São Paulo é densa,
complexa, nada óbvia. Exige entrega sem preconceito para se deixar conhecer.
Mas, quando a gente deixa, surpreende com sua beleza misturada, contida e
derramada. As contradições da grana, a força da rua e do concreto e uma efervescência
insuspeita.
Logo na chegada ao hotel, recebemos
como presente de boas-vindas uma lata de cerveja comemorativa da parada do
orgulho gay, que aconteceu no domingo seguinte à nossa visita. Entramos no táxi,
logo depois, e o motorista mais velho mostra um entendimento completamente
diverso do mesmo evento: “Domingo a Paulista vai estar fechada só para os gays,
viu?”. Quase pergunto se será preciso apresentar uma carteirinha de
identificação para passear por lá, mas desisto e só tomo nota.
Por algum motivo, não consigo
chamar a Consolação, para onde quero ir, de outro nome que não Constelação.
Mais uma das minhas confusões habituais, motivo de riso e diversão na nossa
família, e que continua. Alguns passos na Paulista, a partir da Consolação, e
tropeçamos num grupo de “Ultra Alliens” invadindo a área com um som temático,
que tem como característica principal o vocalista produzindo com as mãos
interferências numa antena de rádio, amplificadas pelo sistema de som, e
acompanhado de outros músicos vestidos de macacão branco tipo NASA e máscaras de
extraterrestre. Um pouco adiante, Elvis Presley evangélico, de afinação
duvidosa, cantando em inglês, estranhamente um repertório nada Elvis, e
abençoando os passantes, chamando para fotos os cadeirantes ou pessoas com
alguma deficiência.
Mais alguns passos, e chegamos ao
forró, com direito ao mano de camisa do Coringão dançando com as minas, em
passos um pouco heterodoxos. Um homem
com um boneco de marionete que toca um piano, em miniatura, chama a atenção do
meu filho mais novo. Mais cliques.
Continuando a caminhada, ouvimos gritos
e imagino uma manifestação “Fora Temer!”. Nada. Chegamos mais perto para
descobrir o motivo do frisson. Pergunta daqui e dali e eram duas celebridades
do YouTube, dando sopa, no meio da
Paulista e fazendo a gravação de um programa de televisão a cabo. O rosto do
meu filho se ilumina. “O Ted e o Muca
Muriçoca estão aí”, grita animado. E eu, na mesma. É a idade! Ele queria ver os
dois de perto, tirar foto. Um homem dá a dica: “Você é pequeno, entra por baixo
do pessoal, quando chegar no segurança, chora que eles te pegam!” Ele pensou e
até tentou se enfiar no meio, mas já não é tão pequeno assim. Uma mulher vê e
se oferece para ajudar a colocá-lo nas costas da minha irmã, a mais alta e
forte do nosso grupo. Somos três mulheres – eu, minha filha mais velha e a
desconhecida – fazendo um guindaste para ele subir no cangote da tia. Todas
juntas, em trabalho de equipe, nos aproximamos do círculo, apoiando as costas
dele por trás, para evitar uma queda e tentar ajudar um pouco a minha irmã que
está na base com todo o peso. Deu certo! Registro feito. Saio chorando de rir
pelo inusitado da cena e pelo colorido da interação com desconhecidos em meio à
Paulista. Não tem preço.
De noite, tem volta à cantina
italiana onde pedi para executarem “Io
que amo solo te” na nossa mesa, anos atrás, com direito a dedicatória ao
meu amor, mais vermelho que pimentão e completamente avesso a esse tipo de
exposição. Meu coração aperta de alegria por trazer a nossa duplinha ali, como
tínhamos planejado tantas vezes, junto com saudade, tristeza e a consciência
que o tempo traz de que ele não vem mesmo. Estar ali, assim, em três dimensões temporais
simultâneas – o passado, o hoje e o adiante – e só um coração, deve ter
transformado minha expressão. “Pode chorar mãe, tudo bem”, dizem os dois
“ourinhos” que ele me deixou, quase em coro, me autorizando a botar para fora o
que me apertava o peito. E as lágrimas caíram.
Terá sido má ideia ir ali?! E
agora? Como encontro o conforto neste lugar para conseguir jantar? Aí, entram
os músicos, senhores de terno de ar muito grave, empunhando um violão, uma
sanfona e um violino, e começam a tocar. O coração acelera e, ao mesmo tempo,
acalma. Uma frase do livro “A Elegância do Ouriço” de Muriel Barbury, me vem à
cabeça e vai acomodando as abóboras na carroça.
No livro, a menina perde uma
grande amiga, tipo mãe, e ao escutar uma música (sempre ela!) sente algo que
descreve como “um sempre no nunca”. Então é isso?! São Paulo, a estação da Luz,
o mercadão, um sanduíche de mortadela, nossos filhos e tantos outros momentos
adiante serão assim. O que não significa nenhum tipo de incapacidade e nem
retira o meu direito de gozar da alegria e do prazer que também seguirão
fazendo parte dessas experiências e desses lugares. Mas pede (ou será exige?)
que eu ACEITE e não me ASSUSTE com os ritmos diferentes que podem agitar meu
coração aqui e ali, onde ele vai sempre estar presente, sem nunca mais voltar.