sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

BOA NOITE, PAPAI!


Tenho duas frases favoritas sobre filhos, colecionadas ao longo dos meus 18 anos completos de maternidade. A melhor delas é de um amigo e pai apaixonado: “Temos que amar os nossos filhos, sem MEDO”. A segunda, de uma autora portuguesa chamada Margarida Rebelo Pinto: “Os filhos nunca são o que esperamos deles, são sempre melhores!” Há alguns anos essas frases funcionam como mantras para mim, especialmente nos momentos de dúvida e hesitação sobre como agir com relação a essas duas criaturas, uma menina e um menino, nascidos de mim. Mais recentemente pela ausência física do pai deles, esses momentos ganharam contornos mais dramáticos e existenciais. Um aspecto particularmente difícil dessa travessia.

Minha filha mais velha não tem o sangue do meu marido, mas se tornou tão sua filha ao longo dos 13 anos de convivência que tiveram, que muitas vezes me surpreendo com as semelhanças entre os dois. Feito o esclarecimento, quero declarar que acordar uma adolescente de 16 anos e uma criança de 9 que foram dormir na mais total normalidade, com a notícia de que o pai morreu repentina e inexplicavelmente, deve estar entre as tarefas mais dolorosas e estúpidas que uma mãe precisa realizar neste mundo. E, depois de ter passado por ela, preciso ir além e confessar que existem outras bem piores depois, quando se vê o sofrimento dos filhos, expresso ou contido, e não se pode fazer nada além de colocar no colo, chorar junto e aceitar que essa dor faz parte da história deles nesse mundo....

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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

PEGADAS



Fotos: Oswaldo Buarim Jr.

Existem quebra-cabeças com os quais nos confrontamos que nos desafiam como enigmas insolúveis e intransferíveis. Em alguns momentos, conseguimos revelar partes esparsas do quadro geral, encaixando aqui e ali alguns grupos de peças, mas os elos que dão sentido ao todo ficam faltando e gritando por serem encontrados. A morte do parceiro de uma vida é um quebra-cabeça desse tipo para quem fica para trás, sem aviso ou contato, sem explicação, buscando obsessivamente fazer sentido do que foi, do que ficou e do que será dali para frente.

Meu marido sempre teve mania de fotografar os próprios pés. Nos quase doze meses passados desde a sua partida, reuni mais de 30 imagens de pegadas dele e algumas do nosso filho menor, também tiradas por ele. E, no meio de tantas perguntas que tenho feito a mim mesma sobre o porquê de tudo isso, coleciono essas fotos e penso repetidas vezes qual seria a razão por trás dessa mania. O que leva uma pessoa a fazer tantas imagens dos próprios pés, ao longo da vida? Como se responder a essa indagação pudesse abrir uma chave mágica para explicar o que aconteceu conosco e me libertar dessa função obsessiva de decifrar o enigma dessa morte tão estúpida.

O retrato mais antigo da coleção foi tirado em novembro de 2002, do alto do Huayna Picchu, nas ruínas de Macchu Picchu, no Peru.  Os pés estão cruzados, no canto da imagem, dentro de um tênis cinza e vermelho e as ruínas ocupam o resto da composição e se espalham sob eles. Foi nossa primeira grande viagem juntos, na qual decidimos nos casar, mesmo sem ter falado abertamente disso naqueles dias. A única declaração “clara” a respeito foi uma frase solta dele: “É tão bom ficar com você que me dá vontade de fazer uma besteira!”.

Estranhamente, foi no dia em que essa primeira foto foi tirada que experimentei, por alguns 15 minutos talvez, um pouco do turbilhão de sensações que me assolam desde o momento em que ele acordou com dor e morreu até aqui, nesse luto ainda aberto. Na noite anterior, havíamos encontrado um casal de brasileiros em Cuzco que afirmou que um grupo de turistas  da terceira idade havia escalado o Huayna Picchu sem dificuldades, dissipando assim o medo de que eu pudesse não dar conta da escalada – que, devo confessar, me assolava desde o início da viagem, em La Paz.

Mas gastamos muito tempo andando pela cidadela Inca e acabamos iniciando a caminhada rumo ao topo do Huayna Picchu às 16 horas, no final da tarde. Fomos os últimos a entrar na área do monte e quando eu já estava colocando os bofes para fora, encontramos franceses com um senso de humor altamente sacana que nos disseram que estávamos muito próximos do topo, só que não! Essa brincadeira minou minha energia completamente. Eu não tinha naquela época estrutura física, muito menos mental e emocional, para continuar até o final daquela trilha. Então, resolvi desistir de ver o topo e esperar por ele ali mesmo.

Sentei, tirei o sapato, fiquei contemplando o horizonte e escrevendo nos meus cadernos de escritos. Mas começou a escurecer e ficar frio e nada de ele voltar. Sem relógio, nem noção da distância até o topo do monte, comecei a me apavorar. Achei que ele pudesse ter passado mal, tido um enfarto lá em cima, SOZINHO – esse fantasma sempre nos rondou desde que o irmão mais velho dele teve o primeiro, dois dias depois do nosso primeiro beijo. A cada minuto que passava, aumentava minha angústia e necessidade de fazer alguma coisa com relação àquela hipótese que me parecia, a cada momento, mais plausível. Mas o que seria? Eu não tinha celular, não conseguia subir, não teria condições de trazê-lo lá de cima, ninguém havia passado desde que ele subiu. Então, decidi descer correndo, desabalada e chamar alguém para ir até lá, o coração pulando na boca. Não fazia um ano que estávamos juntos, mas pensar em perdê-lo para sempre já me gelava a alma e desarvorava completamente.

No meio da descida, começo a escutar a voz dele vindo do céu e me chamando. Mas não conseguia vê-lo, nem quando voltava pela estrada de onde tinha vindo e olhava para cima!! “Terá desencarnado e agora vem me chamar do além?!”, pensava, culpada por não ter conseguido fazer uma figura melhor diante da situação extrema que imaginei. Uma sensação que eu conheceria profundamente nos meses após a sua morte, toda vez que repassava os últimos 15 minutos de vida dele.

E corria, cada vez mais rápido, para o pé do monte, descontrolada, quando, de repente, ele segura meu braço e me puxa com força. “Tá doida?!”, e ri, com o cavanhaque mais horroroso que teve em todo nosso tempo de convivência e, ainda assim, no meio de todo aquele turbilhão interno de sentimentos conflitantes, me pareceu completamente irresistível e deliciosamente de CARNE e OSSO, como eu. Pense num alívio incomparável... E, ao mesmo tempo, numa raiva absurda por ter passado por isso – como aquela que hoje me acomete toda vez que penso que algo poderia ter evitado a sua partida tão prematura, se ele tivesse colaborado sinalizando alguma coisa!!

“Mas que ódio! Podia mesmo era ter morrido! Acho que teria sido melhor do que me fazer passar tanto medo, pânico, angústia, sei lá”, reagi....Fechei a cara geral, fiquei possuída.Se você estava com medo de eu ter enfartado, deveria ficar feliz com o meu retorno. Não!?”, respondeu ele, debochando da minha fantasia sobre o que poderia ter acontecido no topo do Huayna Picchu. Penso que ele sempre gostou de rir diante do perigo e quem sabe da possibilidade da morte, diferentemente de mim, que sempre tive profundo respeito pelos dois e, quem sabe por isso, continuo aqui.

Pois bem, a coleção de pegadas continua com uma série de fotos dos pés dele em havaianas na nossa varanda, e uma na chuva fina com a represa de Igaratá no fundo, no primeiro dia de 2012, com as pernas junto, depois aparecem algumas dele de sandálias pisando folhas secas perto da nossa casa, de tênis, no chão de um museu em São Simão, sua terra natal, e há uma outra ainda em sapato social e meia de lã muito grossa provavelmente no final de 2009, numa viagem a trabalho,  outra ainda na nossa cama junto com os pezinhos do nosso magriça de pijama, talvez da mesma época, outras só dos pés do nosso pequeno, que não consigo datar. A coleção termina com uma foto dos pés dele de sandália, de frente para os pés do nosso caçula de tênis, no aeroporto de Recife, na fila do check-in no retorno para casa, onde, minutos antes, ele me tirou para dançar de rosto colado, dois dias antes da sua morte.

Que sentido alguém pode fazer de tudo isso?!, eu me pergunto, revoltada, nesse final de tarde de janeiro, oito dias antes de completar um ano de luto. Sinto-me esgotada por um calendário pesado de datas afetivas e festivas, hoje solitárias, que se sucedem vertiginosamente, iniciadas com a formatura de ensino médio da nossa filha mais velha, passando pelos dez anos do nosso magriça, o Natal mais doído da história do universo, o Ano Novo, o aniversário de 50 anos dele!! E ainda tenho pela frente o meu aniversário de 41 anos, antes de chegar àquela madrugada interminável de 17 de janeiro. E, haja coração, respiração, humildade e palavras para tentar dar vazão a todas as correntezas desse rio...

E a única explicação que me ocorre para essas fotos é uma necessidade de ele registrar momentos e feitos importantes da sua passagem pelo mundo, como aquela mania de pichar “fulano esteve aqui”, que deixou de ser moda há muito tempo com o advento dos selfies e da fotografia digital. Como se quisesse provar para a posteridade que passou por esse mundo e deixou pegadas, fotografando os pés que nos sustentam e nos levam por onde escolhemos seguir. Os mesmos que nos enraízam na terra e nos unem a todos os seres vivos.

Os pés que descansam eternamente quando a vida nos abandona, mas que, fotografados no tempo, recordam aos que ficam que a morte não apaga os lugares por onde andamos, as pessoas e as coisas que amamos, e o quanto nos realizamos nos menores e nos maiores dos nossos feitos, no tempo que nos coube para caminhar. Marcas, evidências de que tudo o que lembramos aconteceu de verdade e, de alguma forma misteriosa, continua a existir, mesmo que o quebra-cabeça da morte hoje teime em borrar a clareza do retrato de quem fomos nós, enquanto caminhamos lado a lado nesse mundo. Pegadas são também da nossa história e do amor plantado aqui, capazes de iluminar e apontar o rumo na estrada de quem tem que seguir andando, um passo de cada vez.

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

GOTEIRA



Foto: Marina Oliveira.
Texto produzido em 2015.

Dia desses fui acordada no meio da madrugada por uma goteira bem no meio da minha testa. Os quatro ou cinco pingos escorreram do teto do meu quarto, em cima do qual tenho um telhado de grama. Trata-se de um capricho, quase luxo, de inestimável valor simbólico na minha vida. Em 2003, quando começamos a construir a nossa casa, decidimos arriscar e apostar em algo alternativo com paredes de taipa, experiência com técnicas de adobe e dois telhados vivos. Tudo isso em cima de um terreno de inclinações variadas, na beira de um vale, num condomínio irregular! Acho que poucos casais escolheriam administrar tantas variáveis arquitetônicas junto com a consolidação de uma família formada com dois filhos prontos, vindos de relacionamentos anteriores, um com doze anos e outra com cinco, cheques especiais estourados, juros brasileiros e a impossibilidade de pegar financiamento habitacional pela falta de uma escritura do lote.

Mas assim fizemos e, passados mais de doze anos daquela decisão e muitas goteiras que se movem de um ponto a outro da casa, dependendo da direção da chuva, tenho a sensação de que nada nesse mundo nos representa tanto quanto essa casa caprichosa ou problemática, na definição de nossa filha mais velha, quase dotada de uma vida própria. Ali nasceu nosso caçula, que adora passar o dia de pijama dentro dela, no computador. Em torno da casa, rebrotaram mais de 20 árvores nativas do cerrado num terreno onde só havia capão na primeira vez em que meu marido botou os pés nele, quando ainda namorávamos. E, sobre esse caprichoso telhado, vimos muitas estrelas, luas, revoadas de passarinho, queima de fogos de Ano Novo, tomamos vinho, contamos piada, jogamos futebol e vôlei com nossos filhos. Nele toco, junto com uma grande amiga e nosso professor o pandeiro, o tamborim e o tantã quase toda semana. Quando meu amor ainda andava nesse mundo, aconteceram ali as suas poucas exibições de violão para um público muito seleto. Nesse tempo todo, já nos refrescamos muito no chuveirão que instalamos ali e observamos o vale recobrar a vida, depois de ter sido desmatado pelo processo de construção das casas....

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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

QUARENTONA




Foto do dia do meu aniversário de 40 anos, por Oswaldo Buarim Jr.
Texto produzido em 2015.

Desde pequena imaginava completar 40 anos. Como se fosse um portal mágico, depois do qual se adentra um novo tipo de existência mais plena e tranquila.  Tornei-me oficialmente uma quarentona em 13 de janeiro de 2015, na praia dos carneiros, em Pernambuco, cercada dos amores da minha vida - meu marido e meus filhos. Nunca antes tive tanta consciência da qualidade do meu cotidiano ordinário e nem tampouco me senti tão capaz de gozar dele, até a última gota.  Um momento de bálsamo para aquela menina ansiosa e cheia de macaquinhos no sótão e no coração, finalmente recompensada por ter encarado tanta luta interna e esforço para chegar ali, aos benditos 40! Algo como Bartolomeu Dias, dobrando o Cabo das Tormentas e mudando seu nome para Boa Esperança, certo de só encontrar calmaria dali em diante.

Esse estado de graça ainda estava comigo quatro dias depois quando, sem aviso, em quinze minutos de relógio, recebi uma bomba atômica na cabeça, com a morte do meu marido. A entrada dos ENTA se transformou meteoricamente de porta do paraíso em boca do inferno. Desde então, estou mergulhada no purgatório de buscar sentido na covardia de quem escreveu essa trama e errou minha ficha de personagem, onde deveria estar escrito MOCINHA (feliz para sempre!) e não VILÃ (desgraçada!)...

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Lançamento em Brasília
Data: 29/09/2018 (Sábado)
Local: Bar Tiborna, CLN 403, Bloco B
Horário: 17H

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