sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

PEGADAS



Fotos: Oswaldo Buarim Jr.

Existem quebra-cabeças com os quais nos confrontamos que nos desafiam como enigmas insolúveis e intransferíveis. Em alguns momentos, conseguimos revelar partes esparsas do quadro geral, encaixando aqui e ali alguns grupos de peças, mas os elos que dão sentido ao todo ficam faltando e gritando por serem encontrados. A morte do parceiro de uma vida é um quebra-cabeça desse tipo para quem fica para trás, sem aviso ou contato, sem explicação, buscando obsessivamente fazer sentido do que foi, do que ficou e do que será dali para frente.

Meu marido sempre teve mania de fotografar os próprios pés. Nos quase doze meses passados desde a sua partida, reuni mais de 30 imagens de pegadas dele e algumas do nosso filho menor, também tiradas por ele. E, no meio de tantas perguntas que tenho feito a mim mesma sobre o porquê de tudo isso, coleciono essas fotos e penso repetidas vezes qual seria a razão por trás dessa mania. O que leva uma pessoa a fazer tantas imagens dos próprios pés, ao longo da vida? Como se responder a essa indagação pudesse abrir uma chave mágica para explicar o que aconteceu conosco e me libertar dessa função obsessiva de decifrar o enigma dessa morte tão estúpida.

O retrato mais antigo da coleção foi tirado em novembro de 2002, do alto do Huayna Picchu, nas ruínas de Macchu Picchu, no Peru.  Os pés estão cruzados, no canto da imagem, dentro de um tênis cinza e vermelho e as ruínas ocupam o resto da composição e se espalham sob eles. Foi nossa primeira grande viagem juntos, na qual decidimos nos casar, mesmo sem ter falado abertamente disso naqueles dias. A única declaração “clara” a respeito foi uma frase solta dele: “É tão bom ficar com você que me dá vontade de fazer uma besteira!”.

Estranhamente, foi no dia em que essa primeira foto foi tirada que experimentei, por alguns 15 minutos talvez, um pouco do turbilhão de sensações que me assolam desde o momento em que ele acordou com dor e morreu até aqui, nesse luto ainda aberto. Na noite anterior, havíamos encontrado um casal de brasileiros em Cuzco que afirmou que um grupo de turistas  da terceira idade havia escalado o Huayna Picchu sem dificuldades, dissipando assim o medo de que eu pudesse não dar conta da escalada – que, devo confessar, me assolava desde o início da viagem, em La Paz.

Mas gastamos muito tempo andando pela cidadela Inca e acabamos iniciando a caminhada rumo ao topo do Huayna Picchu às 16 horas, no final da tarde. Fomos os últimos a entrar na área do monte e quando eu já estava colocando os bofes para fora, encontramos franceses com um senso de humor altamente sacana que nos disseram que estávamos muito próximos do topo, só que não! Essa brincadeira minou minha energia completamente. Eu não tinha naquela época estrutura física, muito menos mental e emocional, para continuar até o final daquela trilha. Então, resolvi desistir de ver o topo e esperar por ele ali mesmo.

Sentei, tirei o sapato, fiquei contemplando o horizonte e escrevendo nos meus cadernos de escritos. Mas começou a escurecer e ficar frio e nada de ele voltar. Sem relógio, nem noção da distância até o topo do monte, comecei a me apavorar. Achei que ele pudesse ter passado mal, tido um enfarto lá em cima, SOZINHO – esse fantasma sempre nos rondou desde que o irmão mais velho dele teve o primeiro, dois dias depois do nosso primeiro beijo. A cada minuto que passava, aumentava minha angústia e necessidade de fazer alguma coisa com relação àquela hipótese que me parecia, a cada momento, mais plausível. Mas o que seria? Eu não tinha celular, não conseguia subir, não teria condições de trazê-lo lá de cima, ninguém havia passado desde que ele subiu. Então, decidi descer correndo, desabalada e chamar alguém para ir até lá, o coração pulando na boca. Não fazia um ano que estávamos juntos, mas pensar em perdê-lo para sempre já me gelava a alma e desarvorava completamente.

No meio da descida, começo a escutar a voz dele vindo do céu e me chamando. Mas não conseguia vê-lo, nem quando voltava pela estrada de onde tinha vindo e olhava para cima!! “Terá desencarnado e agora vem me chamar do além?!”, pensava, culpada por não ter conseguido fazer uma figura melhor diante da situação extrema que imaginei. Uma sensação que eu conheceria profundamente nos meses após a sua morte, toda vez que repassava os últimos 15 minutos de vida dele.

E corria, cada vez mais rápido, para o pé do monte, descontrolada, quando, de repente, ele segura meu braço e me puxa com força. “Tá doida?!”, e ri, com o cavanhaque mais horroroso que teve em todo nosso tempo de convivência e, ainda assim, no meio de todo aquele turbilhão interno de sentimentos conflitantes, me pareceu completamente irresistível e deliciosamente de CARNE e OSSO, como eu. Pense num alívio incomparável... E, ao mesmo tempo, numa raiva absurda por ter passado por isso – como aquela que hoje me acomete toda vez que penso que algo poderia ter evitado a sua partida tão prematura, se ele tivesse colaborado sinalizando alguma coisa!!

“Mas que ódio! Podia mesmo era ter morrido! Acho que teria sido melhor do que me fazer passar tanto medo, pânico, angústia, sei lá”, reagi....Fechei a cara geral, fiquei possuída.Se você estava com medo de eu ter enfartado, deveria ficar feliz com o meu retorno. Não!?”, respondeu ele, debochando da minha fantasia sobre o que poderia ter acontecido no topo do Huayna Picchu. Penso que ele sempre gostou de rir diante do perigo e quem sabe da possibilidade da morte, diferentemente de mim, que sempre tive profundo respeito pelos dois e, quem sabe por isso, continuo aqui.

Pois bem, a coleção de pegadas continua com uma série de fotos dos pés dele em havaianas na nossa varanda, e uma na chuva fina com a represa de Igaratá no fundo, no primeiro dia de 2012, com as pernas junto, depois aparecem algumas dele de sandálias pisando folhas secas perto da nossa casa, de tênis, no chão de um museu em São Simão, sua terra natal, e há uma outra ainda em sapato social e meia de lã muito grossa provavelmente no final de 2009, numa viagem a trabalho,  outra ainda na nossa cama junto com os pezinhos do nosso magriça de pijama, talvez da mesma época, outras só dos pés do nosso pequeno, que não consigo datar. A coleção termina com uma foto dos pés dele de sandália, de frente para os pés do nosso caçula de tênis, no aeroporto de Recife, na fila do check-in no retorno para casa, onde, minutos antes, ele me tirou para dançar de rosto colado, dois dias antes da sua morte.

Que sentido alguém pode fazer de tudo isso?!, eu me pergunto, revoltada, nesse final de tarde de janeiro, oito dias antes de completar um ano de luto. Sinto-me esgotada por um calendário pesado de datas afetivas e festivas, hoje solitárias, que se sucedem vertiginosamente, iniciadas com a formatura de ensino médio da nossa filha mais velha, passando pelos dez anos do nosso magriça, o Natal mais doído da história do universo, o Ano Novo, o aniversário de 50 anos dele!! E ainda tenho pela frente o meu aniversário de 41 anos, antes de chegar àquela madrugada interminável de 17 de janeiro. E, haja coração, respiração, humildade e palavras para tentar dar vazão a todas as correntezas desse rio...

E a única explicação que me ocorre para essas fotos é uma necessidade de ele registrar momentos e feitos importantes da sua passagem pelo mundo, como aquela mania de pichar “fulano esteve aqui”, que deixou de ser moda há muito tempo com o advento dos selfies e da fotografia digital. Como se quisesse provar para a posteridade que passou por esse mundo e deixou pegadas, fotografando os pés que nos sustentam e nos levam por onde escolhemos seguir. Os mesmos que nos enraízam na terra e nos unem a todos os seres vivos.

Os pés que descansam eternamente quando a vida nos abandona, mas que, fotografados no tempo, recordam aos que ficam que a morte não apaga os lugares por onde andamos, as pessoas e as coisas que amamos, e o quanto nos realizamos nos menores e nos maiores dos nossos feitos, no tempo que nos coube para caminhar. Marcas, evidências de que tudo o que lembramos aconteceu de verdade e, de alguma forma misteriosa, continua a existir, mesmo que o quebra-cabeça da morte hoje teime em borrar a clareza do retrato de quem fomos nós, enquanto caminhamos lado a lado nesse mundo. Pegadas são também da nossa história e do amor plantado aqui, capazes de iluminar e apontar o rumo na estrada de quem tem que seguir andando, um passo de cada vez.

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