domingo, 5 de abril de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - PASSADOS 17 DIAS DE ISOLAMENTO

                                                     Tricô de espera.

Viagem longa pede tempo para se acostumar com as ondas. Dezessete dias transcorridos a bordo deste barco, sem previsão de desembarque, começo a perceber o tremendo esforço psíquico em curso de elaboração inconsciente da realidade. Um lado se mantém firme na repetição de um mantra sobre o caráter passageiro e transitório dessa situação. Basta chegar o dia em que o vírus esteja controlado e tudo voltará ao normal. Mas, cada dia mais, essa voz se parece com uma negação,  resultado de um pânico crescente em mim.  Uma paralisia diante da percepção mais e mais forte de que não haverá retorno possível ao antes, com tudo de bom e ruim que isso significa.

Sair de casa para fazer compras ou passar no banco ou farmácia, com máscara de pano com filtro de papel no meio e ligas de borracha nas orelhas, tornando a respiração difícil em dias quentes, deixar os sapatos usados na porta ao voltar e depois correr para pia para se lavar com água e sabão torna-se um programa cada vez menos atraente como alternativa ao isolamento modorrento em casa. Uma lesão no meu quadril direito, anterior ao vírus, da qual estou me recuperando ainda, me impede de sair para caminhadas na rua, limitando minhas saídas ao rol listado acima. Exercícios para mim, hoje, são: na varanda do meu quarto, ioga, duas vezes na semana e, no quarto da minha filha, em frente à televisão, nos outros três dias, dança aeróbica acompanhando uma playlist do YouTube. Sábado, faxina geral na casa, papinho no hangout com a família no fim da tarde e um zoom com amigas de uma vida, quando conseguimos nos juntar (sempre uma alegria!).

Falo com minha sogra-mãe que completa 90 anos em julho e está em isolamento sozinha com um cachorrinho vira-lata em sua casa em Araraquara. A filha médica, no front em Ribeirão Preto, não pode visitá-la pelo risco ao qual está exposta. A empregada vai todos os dias movida pelo afeto de filha que tem por ela, para cuidar da casa, fazer comida e um pouco de companhia. "Pensar que já tive a casa tão cheia e agora me vejo assim completamente sozinha", diz chorando ao telefone e logo se refaz e muda o rumo da prosa, como é da sua natureza, desde a perda dos dois filhos e, mais recentemente, do marido. "Eu sei que tá chegando minha hora de ir, mas com esse vírus não, né?" e ri gostoso. Percebo uma diferença importante entre o meu isolamento e o dela. Minha sogra não pensa mais no futuro, sabe bem o dela e nada pode mudá-lo, mesmo que todos desejemos que ele dure o máximo possível. Eu tenho no mínimo (espero) metade da minha vida pela frente, dois filhos ainda dependentes de mim para criar e um mar de incerteza a encarar sobre nossas vidas depois do isolamento.

E esse ponto de interrogação cada vez maior no horizonte vai semeando uma angústia em mim. Lendo um livro lindo da escritora Isabel Allende chamado "Longa Pétala de Mar", acabo me identificando com os refugiados da Guerra Civil Espanhola fugitivos de Franco e depois da II Guerra Mundial na Europa, sem saber que mundo encontrariam no desembarque no fim do mundo, que era o Chile, e se haveria possibilidade de retorno, um dia, à terra natal. E só a esperança na reconstrução de sonhos pode alimentar a alma humana nessas encruzilhadas da história na qual fomos surpreendidos (ou, eu pelo menos, fui) - tão diferente das anteriores, mais claramente delimitadas e mais concretas em seus termos.

Então a onda de hoje, domingo, em meio ao isolamento, consiste em terminar o dia, fazendo um tricô de espera e escrevendo, sempre. Buscando a esperança em cada pequeno sinal de solidariedade, de afeto, de janelas se abrindo em oportunidades ou inovações para nossa humanidade, como pão essencial nessa viagem.


2 comentários:

  1. Dureza mesmo. Eu não sei escrever bonito assim. Escrevo no rasgado mesmo, vc me conhece. Tá tudo é muito chato e eu que nunca matei bicho nenhum, tô matando até formiga. Não quero bicho nenhum dentro da minha casa. Com uma raiva danada desses morcegos e vontade de esganar esse tal de corona vírus. Pronto. Falei. Beijo

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  2. Ufa!! A angústia se tornando evidente mesmo nessa leveza da sua escrita. Linda vc.

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