quinta-feira, 1 de setembro de 2016

CRÔNICA



Maracanã lotado em dia de jogo do Brasil! Sombras das chuteiras imortais... Nelson Rodrigues, penso, olhando em volta. Estou na fila para comprar água, no nível 1 do Maracanã, dia 17 de agosto, semifinal olímpica, Brasil e Honduras. Começa a confusão. Uma mulher, aos berros, manda um homem sair, ele carrega um bebê de colo no sling e, nervoso, parte para cima de outra mulher, na fila, todos vaiam forte o covarde, que se afasta. Segue uma discussão que toma conta de todos os que esperam, pelo menos há trinta minutos, para comprar ficha para as bebidas.

O episódio que originou tudo foi simples e clássico. A mulher estava cansada e estressada, depois do metrô lotado feito sardinha para chegar ao estádio, por onde aliás todos os que estavam na mesma fila vieram, e não queria ficar em pé como os demais. Sentiu que tinha direito a um atendimento preferencial e chamou o marido com a criança no colo para justificar a preferência. Mas não colou e quem estava prestes a chegar ao caixa reagiu. Ela se descontrolou, gritou com o marido para tirar a criança do local. Ele, por sua vez, ficou nervoso e partiu covardemente para cima da mulher que não reconheceu a preferência do casal. Chamaram a polícia, a mãe do bebê chorou e fez um longo discurso... Os policiais botaram pano quente.

Logo, outro sujeito que estava ali com um “filho especial” desabafou: “Eu tenho um filho assim e nunca entro em fila preferencial! Tem gente que é demais! Quer privilégio para tudo!” Outra pessoa atrás de mim arriscou: “Esse homem aí tá acostumado com barraco. Por isso partiu para cima da outra, na fila. Tá na cara que a mulher é uma descontrolada e a confusão rola solta em casa. Coitada da criança!”....GOOOOOOOOL, do Brasil! Correria nos corredores, as caixas gritam e esquecem da fila, ninguém se lembra mais da confusão.

Uma senhora chega para reclamar, um homem alto com a camisa do Brasil que está em último na fila põe a mão no ombro dela, olha em seus olhos. “O que a senhora quer?”, pergunta.  “Ser atendida!”, responde, impaciente, porque parece óbvio. Ele sorri de lado e continua: “Não, minha senhora! Eu perguntei o que a senhora REALMENTE quer!”, numa voz de pastor. Em pleno Maracanã lotado, uma questão existencial profunda parece estar colocada. Ela fica muda, se acalma, desiste do que veio procurar, seja lá o que for certamente não vai conseguir naquela fila.

Filmo e gravo os personagens, o lugar. Só consigo pensar no texto que vou escrever sobre esse momento. Por que será que vejo o mundo assim, como uma crônica de Nelson Rodrigues? As Olimpíadas do Rio me pegaram num momento muito particular. Navegando no luto do meu amor, desempregada, quarentona, minha filha mais velha começando a faculdade e eu no meio daquela multidão, querendo achar o que realmente quero fazer da vida daqui para frente. E, a todo momento, percebo que é escrever, fotografar, nem que seja só com o olhar, e pensar no sentido do que me cerca, dos fatos, das pessoas que passam fora e dos sentimentos que provocam dentro. Uma cronista da vida. Sempre fui assim... Mas ainda não consigo saber exatamente o que fazer com isso. E a disponibilidade dos últimos tempos, provocada por uma necessidade imperiosa de me reinventar completamente, só aguçou essa percepção.

Será que toda vocação tem que virar profissão? A gente bem que tenta fazer as duas coisas caminharem juntas ou pelo menos próximas. Mas há talentos que não se prestam a virar meio de vida, afinal o famigerado mercado escolhe as vocações que serão recompensadas financeiramente. Muitas vezes opera destruindo as palavras e sentidos que não servem para vender nada e podem até levar à redução do consumo...Imagina?!

Quando escolhi minha profissão, pensava que o jornalismo me permitiria viver de escrever, como confessei no primeiro texto deste blog. Mas o mercado de trabalho tão bruto e a rotina de produção pesada me mostraram que seria bem mais complexo equacionar essa dança entre vocação e profissão na minha vida. Faz dezenove anos que me formei – e quase dois meses que não tenho emprego fixo, pela primeira vez em todo esse tempo. E colocar isso no “papel” me dá uma sensação de prazer indescritível de LIBERDADE e, ao mesmo tempo, uma angústia absurda de não ter resposta!! Só milhares de perguntas...Minha filha mais velha me surpreende. Assim são os filhos, sempre! Abriu mão da vaga conquistada com muito esforço em uma universidade pública porque descobriu, trabalhando como voluntária nos Jogos Olímpicos do Rio, o que quer de verdade. Admiro sua coragem e determinação. Vai voltar para o cursinho e fazer o ENEM, no final do ano. “Segue o seu coração!”, é tudo o que eu posso dizer para ela, e talvez muito mais para mim, porque além disso, realmente não há mais.

Houve um tempo em que acreditava que havia caminhos mais amenos e retos do que outros e muitas vezes me torturei por nunca ter escolhido essas “vias expressas”, idealizadas pela ilusão de que há existência sem dúvidas. Hoje, mais madura e consciente de mim mesma e dos significados mais profundos da minha trajetória, só posso repetir as palavras de Antonio Machado, na belíssima poesia Cantares: “Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar”.  

GOSTOU?! #debaixodosipes

Em Brasília: à venda na Banca da Conceição, na superquadra 308 sul.

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2 comentários:

  1. A gente não se dá conta de que o importante é apreciar a estrada, e não o destino.
    Como nas palavras de Sidney Miller:
    "No fim do mundo
    Tem um tesouro
    Quem for primeiro
    Carrega o ouro
    ...
    Pois é, pra quê?"

    Mais um texto lindo, Marina.

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