quinta-feira, 15 de setembro de 2016

RITMO


Comecei minha relação com o pandeiro há mais de quatro anos. Queria uma atividade lúdica, de descompressão do dia de trabalho e um pouco de diversão junto com outras amigas que também tinham vontade de se aventurar pelos caminhos da percussão. O primeiro contato com o instrumento foi desastroso. Achei pesado, doeu meu pulso esquerdo, não tinha a menor condição de sustentar o pandeiro numa mão e ainda tocar com a outra.  Resolvi começar pelo tantan, que apesar de maior, parecia mais fácil, repousava sobre a perna, facilitando as coisas para mim. Mas acabei encomendando um pandeiro pelo correio de um artesão do Rio, o Zezinho.
Quando chegou o bendito e o peguei nas mãos, me surpreendi com a sua leveza, em comparação ao que eu havia experimentado antes, e pensei: “acho que dá para tentar!”. Mas não pensem que foi fácil como eu imaginei brincar de batucada no meu telhado de grama. Tinha, primeiro, um conflito de estar tirando o tempo livre com a minha família, que sempre é escasso para quem cumpre jornada de 40 horas semanais de trabalho. Apesar de sempre dar jantar aos meninos e fazer o dever de casa antes de começar, numa correria alucinada geralmente, vez por outra batia aquela culpa famigerada que persegue as mulheres nesse mundo. Depois, vinha o medo de não conseguir aprender, acompanhado da constatação de que não sou um talento nato e nem tenho um ouvido especialmente bom.
Tive a sorte de começar com o professor perfeito. Simples, descontraído, desencanado, tranquilo ao ponto de às vezes parecer estar em outro mundo, que sempre lembrava a frase de um peruano com quem teve aula, que virou o bordão dos nossos anos de samba no telhado de grama: “A música brôta (assim mesmo para imitar o sotaque original)!”. E não é que é verdade?!
Quando a gente perde o medo de errar e, principalmente, reduz o esforço para acertar, as coisas parecem aflorar e a hora de entrar fica clara, assim como a de brecar. Talvez tenha sido  isso o que me atraiu para a percussão, logo nos primeiros anos dessa jornada recente de autoconhecimento, ouvindo o Marcos Suzano tocar com o Vitor Ramil, no SESC, em São Paulo. Um momento de absoluto êxtase por ouvir a milonga de “Estrela, Estrela”, que conhecia desde adolescente na voz da Gal Costa, dançar com um ritmo que  eu nunca havia imaginado que poderia ter, sem perder a sua força e melancolia originais.
A percussão tem uma sutileza e uma complexidade enormes, disfarçadas ou até quem sabe escondidas, em instrumentos simples, quase rudimentares na sua aparência, quando comparados aos de corda e de sopro, por exemplo, ou a um piano. Mas é o ritmo que vem dela que dá vida e sustenta a música, e quando a gente pára para escutar só as suas batidas, e mais nada, nasce o famoso suingue que faz eco com a pulsação do nosso próprio coração. Esse gingado que faz a vida ter graça nas suas pequenas coisas e que nos ajuda a lidar com os sentimentos mais diversos e que incluem tristeza, dor, impotência, solidão, todos juntos e misturados, dançando continuamente ritmados.
Entre tantas coisas que descobri e aprendi com a música e, em especial, com a percussão, a mais importante delas talvez seja perceber que o menor esforço produz o melhor som. Assim é também com a nossa voz, quando projetada no canto ou num mantra. Quanto menos força colocamos para puxar o ar ou tocar o pandeiro, quanto mais minimalista o movimento e a respiração, maior o volume, o alcance e a clareza do  som produzido.
Hoje, ao final da aula de yoga, ouvi uma definição belíssima dessa prática milenar. Diz que é um caminho para atingir o inatingível e para colocar atenção TOTAL no presente. Nesses dias, em que meu coração tem apertado com uma saudade funda, que faz parte do cotidiano do meu luto, tão cheio de serenidade e de dor,  isso faz um sentido inacreditável.
É como no choro, a saudade e a dor fluem e se esparramam pelas cordas e sopros do conjunto, mas o ritmo da percussão garante que a música vai chegar ao final. Aquela batida constante leva todos os instrumentos juntos, mesmo no silêncio do breque, que realça o solo do violão, e os une para transformar aquele conjunto de notas em música.
E quando se está presente o suficiente, numa roda de choro ou em qualquer outro lugar, para escutar somente, e se esforçar o mínimo para participar, o inatingível desaparece  porque vira AGORA,  e podemos simplesmente ser parte dele e mais NADA. E nisso, é possível repousar e se libertar dos fantasmas do medo, da solidão e da angústia, e compreender com o coração que nenhuma dor pode parar a música ou a vida, porque ela tem um ritmo próprio, que segue e brota, das formas mais inesperadas possíveis. E continua a batucada....

GOSTOU?! #debaixodosipes

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