Distopia ou utopia? Fico pensando qual seria a proposta do vírus-ducha para a humanidade hoje. Como alguém pode confundir antônimos, você me pergunta. Não pode mesmo. Trata-se da nossa encruzilhada atual, da qual participo. O nosso modo de vida está em xeque, independente de como cada um de nós enfrente o isolamento e todas as suas consequências. Iguais como humanos sim, mas tão desiguais como cidadãos. E isso escancara nossos piores pecados como sociedade global, como economia, como cultura, como seres teoricamente éticos.
Viver sem opção de sair, como os encarcerados e hoje os isolados, traz grande opressão e privações de toda ordem à subjetividade. Mas saber que se conta com um leito de UTI em hospital privado, ou um salário garantido no final do mês para pagar as contas, muda a radicalidade dessa distopia atual. Como tenho na minha imaginação uma grande amiga e companheira de jornada, sobretudo nos piores momentos, e a esperança arraigada em meu coração, prefiro pensar em tudo isso como um convite à construção da utopia, enfim! Uma que se molde exclusivamente pela experiência concreta do bem-estar do humano e não por uma ideologia ou teoria qualquer, num movimento contrário a "utopias" anteriores, sem nos preocuparmos nem por um segundo qual será o ornitorrinco teórico-ideológico nascido a partir dessa empreitada.
Nesta utopia, para a qual escuto o vírus - tão fofinho em sua aparência, e tão nefasto em seus efeitos (como muita gente por aí) - nos chamando, há algumas opções bem interessantes, a meu ver. Primeiro com relação ao consumo. Deu. Pessoas não são objetos e está na hora de ter só o realmente necessário para viver com dignidade, e com a possibilidade de sonhos individuais. Isso não alimenta o crescimento econômico baseado na produção cada vez mais intensa para abastecimento de uma demanda cada vez mais desconectada do uso real dos produtos? Paciência. Para quem sente arrepios de pensar nisso que proponho como utopia, pense na distopia permanente de ter sua vida controlada pelo resto dos seus dias pelo vírus da vez, fugindo da devastação do planeta, e ditando se você pode ou não sair de casa, encontrar seus amigos ou abraçar seus pais e avós.
Segundo: um mundo onde o valor de todo trabalho está no que ele proporciona aos seres humanos e não na riqueza monetária que gera. Então, empregadas domésticas, músicos, cientistas, economistas, artistas de todo tipo, jardineiros, médicos, todo mundo tem um valor ENORME, cada um no seu quadrado de saber, nenhum deles mais ou menos importante, todos necessários ao pleno bem-estar da humanidade. Tem vontade de chamar essa proposta do corona de distopia? Então, pensa num mundo onde pessoas sem água potável, sem saneamento básico, sem esgoto e sem comida saiam pelas ruas desesperadas, em busca de alívio e encontrem nada. Muitos morrerão nessa empreitada, claro. Mas não todos. E os sobreviventes dessa horda da distopia de hoje vão invadir a sua utopia de ontem e te mostrar que não existe possibilidade do mundo antes do corona sobreviver intacto. Neste dia 12 de quarentena, proponho um brinde à nova utopia trazida pelo vírus-ducha a quem tenha coragem de construí-la!
terça-feira, 31 de março de 2020
domingo, 29 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIAS 9 E 10
Luvas de faxina
Nada me impressiona mais que o tempo e suas revelações. No baralho mítico de tarô, que costumo jogar, a carta do "eremita", associada em outros decks com o número 9 (dia de ontem do diário), é Cronos. Pai de Zeus e de todos os mais poderosos deuses do Olimpo. Existia antes de tudo e, embora tenha sido morto pelos filhos, depois de tê-los engolido um a um ao nascer, para não perder a supremacia do poder, segue como a presença mais persistente no nosso universo humano. Talvez por ser uma criação e necessidade exclusivamente nossa, de marcar a passagem sobre a terra e assim termos certeza de termos existido. Dez dias completos de isolamento social ou quarentena me trouxeram a visão completa do meu ponto fraco desnudada pelo tempo: a maternidade.
Disfarçada sob a capa de desespero - real, diga-se de passagem - pela minha falta de talento na cozinha, estava, na verdade, o meu maior desafio desde o nascimento dos meus filhotes e antes até, quando assumi essa função com relação às minhas irmãs mais novas, após a morte da minha mãe: prover TODAS as necessidades dessas criaturas. E o tempo, na sua infinita capacidade de desgastar até esvair os véus e disfarces humanos, me mostrou o começo, novamente. A cobra que morde o próprio rabo, outro símbolo recorrente do tempo. Quando, independente de coronavírus, luto, desemprego, e tudo mais ao redor, existia uma menina, depois uma mulher, incapaz de aceitar limites sobre sua capacidade de produzir o bem-estar no outro e no grupo familiar.
Esse ser primitivo da minha maternidade não suporta tudo o que sente como fracasso, muito embora, em grande parte das vezes não o seja, e a racionalidade de hoje consegue perceber a diferença, felizmente. O treino brutal de receber do além um bebê indefeso, sem fala e sem capacidade de prover suas próprias necessidades, tornou esse mecanismo primitivo em mim numa força sobrenatural. Mas o tempo treina, nos torna excelentes em algo e aí inverte a brincadeira, completamente. Porque ele é círculo e não linha reta, lembram? E, desde há algum tempo - com a emancipação completa das minhas irmãs em mulheres adultas, e a morte do meu amor e todas as suas consequências, e depois ou junto com isso tudo, o desenvolvimento dos meus filhos em adolescentes e, no caso da mais velha, adulta -, tenho lutado com a impotência diante de um número cada vez maior de necessidades vitais da parte deles, as quais não posso e jamais poderei prover. Essas que são mais complexas do que comer, dormir, dar banho, vestir, aquecer etc. Aquelas que fazem parte do processo de individuação deles, suas batalhas, escolhas, dores e delícias de serem quem são, como diria Caetano.
E conviver, todo dia, com o fato de que não consigo alimentar esses filhotes como eu gostaria, que teoricamente faz parte do grupo de necessidades às quais eu DEVERIA ser capaz de prover, me trouxe uma opressora e avassaladora sensação de fracasso. E isso, para ser muito sincera, tem sido o maior dreno da minha energia e a maior fonte de ansiedade nesse período. Algo sem qualquer conexão com o vírus-ducha.
Mas hoje acordei consciente e disposta a me entregar ao treino de deixar cada um deles fazer suas escolhas e lidarem com elas, inclusive à mesa, dentro do contexto atual de restrição de outras comidas melhor preparadas. E detalhe do nível de dificuldade da tarefa: NÃO SOFRER COM ISSO. Porque não tem drama, ao contrário, tem processo de crescimento e amadurecimento para todo mundo, eles e eu, inclusive. Morrer de fome com dispensa cheia não tem jeito. E, resguardada essa condição, me parece a melhor maneira de aliviar essa pressão no meu peito, que pode tornar o isolamento com quem eu mais amo no mundo em algo opressor para além do que é, por si só, perder a liberdade de ir e vir, sem culpa.
PS - Aos que me seguem nestes registros, quero comunicar outra decisão soprada pelo tempo em meu ouvido. Nem tudo o que se escreve num diário serve para publicação e, muitas vezes, precisa tempo (sempre ele!) para depurar o que se quer comunicar. Portanto, vou escrevendo aqui, a partir de hoje (dia 10), na medida em que tiver algo maduro o suficiente para compartilhar. Aqui também, no blogue, trata-se de maratona, não corrida de tiro.
Nada me impressiona mais que o tempo e suas revelações. No baralho mítico de tarô, que costumo jogar, a carta do "eremita", associada em outros decks com o número 9 (dia de ontem do diário), é Cronos. Pai de Zeus e de todos os mais poderosos deuses do Olimpo. Existia antes de tudo e, embora tenha sido morto pelos filhos, depois de tê-los engolido um a um ao nascer, para não perder a supremacia do poder, segue como a presença mais persistente no nosso universo humano. Talvez por ser uma criação e necessidade exclusivamente nossa, de marcar a passagem sobre a terra e assim termos certeza de termos existido. Dez dias completos de isolamento social ou quarentena me trouxeram a visão completa do meu ponto fraco desnudada pelo tempo: a maternidade.
Disfarçada sob a capa de desespero - real, diga-se de passagem - pela minha falta de talento na cozinha, estava, na verdade, o meu maior desafio desde o nascimento dos meus filhotes e antes até, quando assumi essa função com relação às minhas irmãs mais novas, após a morte da minha mãe: prover TODAS as necessidades dessas criaturas. E o tempo, na sua infinita capacidade de desgastar até esvair os véus e disfarces humanos, me mostrou o começo, novamente. A cobra que morde o próprio rabo, outro símbolo recorrente do tempo. Quando, independente de coronavírus, luto, desemprego, e tudo mais ao redor, existia uma menina, depois uma mulher, incapaz de aceitar limites sobre sua capacidade de produzir o bem-estar no outro e no grupo familiar.
Esse ser primitivo da minha maternidade não suporta tudo o que sente como fracasso, muito embora, em grande parte das vezes não o seja, e a racionalidade de hoje consegue perceber a diferença, felizmente. O treino brutal de receber do além um bebê indefeso, sem fala e sem capacidade de prover suas próprias necessidades, tornou esse mecanismo primitivo em mim numa força sobrenatural. Mas o tempo treina, nos torna excelentes em algo e aí inverte a brincadeira, completamente. Porque ele é círculo e não linha reta, lembram? E, desde há algum tempo - com a emancipação completa das minhas irmãs em mulheres adultas, e a morte do meu amor e todas as suas consequências, e depois ou junto com isso tudo, o desenvolvimento dos meus filhos em adolescentes e, no caso da mais velha, adulta -, tenho lutado com a impotência diante de um número cada vez maior de necessidades vitais da parte deles, as quais não posso e jamais poderei prover. Essas que são mais complexas do que comer, dormir, dar banho, vestir, aquecer etc. Aquelas que fazem parte do processo de individuação deles, suas batalhas, escolhas, dores e delícias de serem quem são, como diria Caetano.
E conviver, todo dia, com o fato de que não consigo alimentar esses filhotes como eu gostaria, que teoricamente faz parte do grupo de necessidades às quais eu DEVERIA ser capaz de prover, me trouxe uma opressora e avassaladora sensação de fracasso. E isso, para ser muito sincera, tem sido o maior dreno da minha energia e a maior fonte de ansiedade nesse período. Algo sem qualquer conexão com o vírus-ducha.
Mas hoje acordei consciente e disposta a me entregar ao treino de deixar cada um deles fazer suas escolhas e lidarem com elas, inclusive à mesa, dentro do contexto atual de restrição de outras comidas melhor preparadas. E detalhe do nível de dificuldade da tarefa: NÃO SOFRER COM ISSO. Porque não tem drama, ao contrário, tem processo de crescimento e amadurecimento para todo mundo, eles e eu, inclusive. Morrer de fome com dispensa cheia não tem jeito. E, resguardada essa condição, me parece a melhor maneira de aliviar essa pressão no meu peito, que pode tornar o isolamento com quem eu mais amo no mundo em algo opressor para além do que é, por si só, perder a liberdade de ir e vir, sem culpa.
PS - Aos que me seguem nestes registros, quero comunicar outra decisão soprada pelo tempo em meu ouvido. Nem tudo o que se escreve num diário serve para publicação e, muitas vezes, precisa tempo (sempre ele!) para depurar o que se quer comunicar. Portanto, vou escrevendo aqui, a partir de hoje (dia 10), na medida em que tiver algo maduro o suficiente para compartilhar. Aqui também, no blogue, trata-se de maratona, não corrida de tiro.
sexta-feira, 27 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 8
Visitante do dia, comendo banana.
No mar de dias indistintos, navegamos ondas radicais dentro de nós. Acordei cedo, seguindo a lição da última segunda-feira, na qual fui atropelada por levantar tarde demais, tomei café e a neblina nas árvores do vale tornou mais aguda essa melancolia no ar. Fui para a varanda praticar uma ioga leve, pois estava ainda dolorida do exercício de cardio, enviado por uma amiga num dos grupos, e que resolvi fazer há dois dias e ainda não me recuperei. Tem uma tensão acumulada na região dos ombros e pescoço, quase permanente. Mas a gente maneja com algum alongamento e muita respiração. Medito e logo ouço um roçar de folhas particular. Sinal de visita. O quati da foto deste post e sua família numerosa - presente, mas não clicada - fazem a festa com o cacho de bananeira ainda em broto no quintal, bem perto do parapeito da minha varanda. Tanta paz na natureza e tão pouca em mim.
Talvez hoje seja o dia mais difícil de escrever, pela sua característica cinza, a cor sem lado definido e, apesar disso, desbotada e fria, ao menos para mim. Fiz um almoço bastante gostoso, pronto no horário, mas de pouco ibope. Algo muito decepcionante, confesso, que me fez perceber que melhorar o humor da turma, nesses dias, está muito além de uma questão de talento culinário. Trata-se de mais uma impotência a lidar, entre tantas. A navegação é individual, e os meninos precisam encarar dentro deles, como eu em mim, as muitas adaptações necessárias (quase todas indesejadas) e frustrações pequenas e grandes, em tempos de vida do avesso, sem data para voltar ao normal. Então, recolho a vela porque não tem vento mesmo, como e sigo o dia, tentando apenas chegar ao final dele. Por hoje, só por hoje, tem que bastar.
quinta-feira, 26 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 7
Diários dos últimos anos.
Dia de pedreira, lidando com o misto de sentimentos conflitantes trazidos por esse isolamento. O sétimo dia tem sempre um significado de terminar de sepultar quem partiu. A essa altura, a irreversibilidade da morte se estabelece. Talvez seja a angústia de admitir a permanência desse estado de vida em suspensão o que despertou, ontem, em mim, uma estranha sensação. Explico. A bateria do meu celular arriou e ficar isolada sem esse aparelhinho mágico seria insuportável. Saí, então, para buscar um telefone de reserva da minha irmã e levei os filhos junto para uma voltinha, depois de tantos dias, percebendo a tensão crescendo neles também nesse confinamento.
Foi tão esquisito. Foi como fazer algo muito errado e o sentimento conhecido como culpa me invadiu, assim que entramos no carro. Ao dar voz a isso, meu filho, no seu pragmatismo de pessoa de exatas, disse logo: "Mas você está mesmo quebrando uma regra". E eu calei. "Mas tinha uma "razão" para isso!" Pensei comigo, em defesa própria. No caminho, os três observavam o movimento de ida e vinda de carros. E constatamos muito mais gente circulando do que o esperado, e a luz vermelha acendeu logo porque sabemos que isso não é nada bom.
E talvez seja esse o lado feio das coisas que vive em nós, mencionado no dia 6 deste diário. Quem não quer fingir que a verdade é mentira para seguir a vida e pronto?! O problema está em CEDER a essa força interna e embarcar numa viagem maluca do tipo que levou Nero a atear fogo em Roma. E não estamos muito longe disso, infelizmente, neste sétimo dia.
No Brasil, além do vírus, há uma volatilidade constante do ambiente político, na qual estamos mergulhados há tempos, mas que ganha contornos dramáticos numa hora assim. Mas, na fronteira entre a civilização e o justiçamento, na qual nos habituamos a tocar adiante, as escolhas individuais têm um peso gigantesco. É injusto, quase medieval, mas chegamos ao ponto onde a consciência de cada um precisa ser forte o bastante para iniciar um processo coletivo de mudança, por uma simples questão de calamidade pública.
O hábito de escrever diários desde os dez anos de idade, primeiro de forma esporádica e, a partir dos 22 anos, quase todo dia, me ensinou que refletir sobre nós mesmos e nossa interação com a vida, enquanto se caminha, faz muita diferença. Como se a semente de um entendimento meio difuso de ontem, quando registrado, recebesse uma poderosa ajuda para se revelar por completo, nos alimentando de uma consciência extra sobre a nossa parte na trajetória. Esse exercício deixa rastros claros e preciosos das forças em conflito constante dentro de nós, e como atuam nos levando, em vários momentos, a PREFERIR nos agarrarmos a qualquer mentira, e quanto mais mágica, mais atraente, porque nada exige mais esforço, trabalho pessoal e abertura do que a verdade. Pior. Embora seja a única via verdadeira de transformação, ela não traz garantia de resultado, só de processo e, no fundo, a vida não passa disso, um longo processo com um ponto final mais ou menos abrupto e sempre inesperado.
Talvez seja essa atividade insana da minha parte, em registros privados - fotografei só os diários últimos cinco anos para ilustrar o post -, que me forjaram escritora. Minha voz foi encontrada nessa lida diária comigo mesma, tendo no papel e na caneta instrumentos para me ver melhor, e isso inclui o pior de mim. Nisso descobri que ninguém pode escolher a verdade sem encarar o pior de si, da humanidade e de quem se ama. E quanto mais grave o momento, mais precisamos ser capazes de sustentar o olhar e ganhar consciência para seguir a estrada mais difícil, no caso atual: ficar em casa isolados, sem saber até quando, embora cada fibra do nosso corpo e espírito, ou pelo menos do meu, peça para voltar à vida normal agora.
Dia de pedreira, lidando com o misto de sentimentos conflitantes trazidos por esse isolamento. O sétimo dia tem sempre um significado de terminar de sepultar quem partiu. A essa altura, a irreversibilidade da morte se estabelece. Talvez seja a angústia de admitir a permanência desse estado de vida em suspensão o que despertou, ontem, em mim, uma estranha sensação. Explico. A bateria do meu celular arriou e ficar isolada sem esse aparelhinho mágico seria insuportável. Saí, então, para buscar um telefone de reserva da minha irmã e levei os filhos junto para uma voltinha, depois de tantos dias, percebendo a tensão crescendo neles também nesse confinamento.
Foi tão esquisito. Foi como fazer algo muito errado e o sentimento conhecido como culpa me invadiu, assim que entramos no carro. Ao dar voz a isso, meu filho, no seu pragmatismo de pessoa de exatas, disse logo: "Mas você está mesmo quebrando uma regra". E eu calei. "Mas tinha uma "razão" para isso!" Pensei comigo, em defesa própria. No caminho, os três observavam o movimento de ida e vinda de carros. E constatamos muito mais gente circulando do que o esperado, e a luz vermelha acendeu logo porque sabemos que isso não é nada bom.
E talvez seja esse o lado feio das coisas que vive em nós, mencionado no dia 6 deste diário. Quem não quer fingir que a verdade é mentira para seguir a vida e pronto?! O problema está em CEDER a essa força interna e embarcar numa viagem maluca do tipo que levou Nero a atear fogo em Roma. E não estamos muito longe disso, infelizmente, neste sétimo dia.
No Brasil, além do vírus, há uma volatilidade constante do ambiente político, na qual estamos mergulhados há tempos, mas que ganha contornos dramáticos numa hora assim. Mas, na fronteira entre a civilização e o justiçamento, na qual nos habituamos a tocar adiante, as escolhas individuais têm um peso gigantesco. É injusto, quase medieval, mas chegamos ao ponto onde a consciência de cada um precisa ser forte o bastante para iniciar um processo coletivo de mudança, por uma simples questão de calamidade pública.
O hábito de escrever diários desde os dez anos de idade, primeiro de forma esporádica e, a partir dos 22 anos, quase todo dia, me ensinou que refletir sobre nós mesmos e nossa interação com a vida, enquanto se caminha, faz muita diferença. Como se a semente de um entendimento meio difuso de ontem, quando registrado, recebesse uma poderosa ajuda para se revelar por completo, nos alimentando de uma consciência extra sobre a nossa parte na trajetória. Esse exercício deixa rastros claros e preciosos das forças em conflito constante dentro de nós, e como atuam nos levando, em vários momentos, a PREFERIR nos agarrarmos a qualquer mentira, e quanto mais mágica, mais atraente, porque nada exige mais esforço, trabalho pessoal e abertura do que a verdade. Pior. Embora seja a única via verdadeira de transformação, ela não traz garantia de resultado, só de processo e, no fundo, a vida não passa disso, um longo processo com um ponto final mais ou menos abrupto e sempre inesperado.
Talvez seja essa atividade insana da minha parte, em registros privados - fotografei só os diários últimos cinco anos para ilustrar o post -, que me forjaram escritora. Minha voz foi encontrada nessa lida diária comigo mesma, tendo no papel e na caneta instrumentos para me ver melhor, e isso inclui o pior de mim. Nisso descobri que ninguém pode escolher a verdade sem encarar o pior de si, da humanidade e de quem se ama. E quanto mais grave o momento, mais precisamos ser capazes de sustentar o olhar e ganhar consciência para seguir a estrada mais difícil, no caso atual: ficar em casa isolados, sem saber até quando, embora cada fibra do nosso corpo e espírito, ou pelo menos do meu, peça para voltar à vida normal agora.
quarta-feira, 25 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 6
Registro histórico, encontro de amigas.
Por onde começar quando algo parece interminável? É a reflexão do dia. Hoje acertei a mão no almoço, graças à Rita Lobo, minha guia, minha luz para pilotar as panelas de agora em diante. Apesar disso, não consegui tirar a minha filha mais velha de uma tristeza profunda (a maior registrada até aqui) e nem o mais novo da sua irritação com estudos a distância. "Se é para ficar fazendo dever em casa, preferia ir pra escola", declarou. Mas minha parte com relação à alimentação dos filhotes foi realizada, botei comida descente na mesa, em horário compatível com uma refeição chamada almoço! E nada no mundo mundo me alivia mais do que ter certeza de que NÃO HÁ NADA MAIS QUE EU POSSA FAZER a respeito. Agora pertence a cada um lidar com o turbilhão dentro, causado pela insegurança fora, e a falta de previsibilidade sobre quando termina a emergência.
A angústia do "até quando?" talvez seja o que tenha nos igualado e, por isso mesmo, nos tornado mais humanos nesse tempo de exceção. Guardadas as devidas proporções entre o tamanho do impacto no bolso e no planejamento de cada um, e na rede de proteção disponível para enfrentar a calamidade, ficamos no mesmo barco ou nos sentimos assim, enfim. De repente, vem uma clareza sobre a falsidade da ideia de uma pessoa pode estar bem pra valer, enquanto outras morrem de fome, violência, negligência, omissão, ataques de ódio e... coronavírus!
Precisou esse bichinho microscópico saído da China para dissipar essa névoa maluca que nos hipnotizou, turvando nosso entendimento sobre a importância da verdadeira política para a coletividade, aquela com P maiúsculo cujo significado é serviço e pactuação para o bem de todos, sobre o valor capital do diálogo sem desqualificação do outro, sobre a escuta generosa do "outro lado", e o que se passa com quem está num sapato aparentemente diferente do nosso - só que não -, como nos esfrega na cara o corona.
Quanto mais iguais, mais humanos, em todos os matizes dessa palavra que vai dos mais nobres aos mais mesquinhos comportamentos e TODOS, sem exceção, fazem parte de cada um de nós, assim como da coletividade. Os preconceitos caem por terra e algumas verdades negadas começam a gritar e fica mais difícil fechá-las de novo em algum porão....Embora haja os que preferem a morte agarrados à mentira do que admitir erros e fracassos.
Um exemplo: a tecnologia. As pessoas mais velhas a temem e muitas vezes a desprezam, culpando-a pela "degeneração da sociedade", os mais jovens a amam e constroem todos os seus relacionamentos, de diversão ao ganha-pão, em torno dela. E, quando a emergência nos iguala, enxergamos claramente que a tecnologia não pode ter culpa, ela não tem intenção, está aí para nosso uso. E somos nós, humanos, mais uma vez, nas nossas ambiguidade e negação, que a utilizamos para disseminar o ódio, a desinformação, a superficialidade e o consumismo, de pessoas e relacionamentos, inclusive. Mas, em meio ao vírus-ducha, percebemos todo o seu potencial como instrumento de manutenção de vínculos e aproximação de pessoas, como possibilidade de trazer alento, soluções concretas e fundamentais para o avanço da humanidade. Como é da minha natureza, escolho olhar o lado feio disso tudo bem no olho e, sustentando a mirada, observar o que dele vive em mim, escolhendo, cada dia, o outro lado nesse começo interminável, no qual o mundo está mergulhado.
PS - Não pude resistir a postar o registro histórico de quatro das minhas amigas-irmãs em reunião por vídeo no celular ontem à noite. Pela ordem, uma delas fazendo o caçula ninar, outra (sem óculos, né?) espremendo a vista para ver mais pertinho o pessoal do outro lado (imagino), a terceira com esse sorriso meio de lado tão dela, quando algo que vê toca seu coração, e a quarta, guerreira danada com uma baixinha em casa que é um furacão, deixando a faxina quase eterna nessa situação de lado, para encontrar as amigas. O próximo encontro eu não perco, visse?
Por onde começar quando algo parece interminável? É a reflexão do dia. Hoje acertei a mão no almoço, graças à Rita Lobo, minha guia, minha luz para pilotar as panelas de agora em diante. Apesar disso, não consegui tirar a minha filha mais velha de uma tristeza profunda (a maior registrada até aqui) e nem o mais novo da sua irritação com estudos a distância. "Se é para ficar fazendo dever em casa, preferia ir pra escola", declarou. Mas minha parte com relação à alimentação dos filhotes foi realizada, botei comida descente na mesa, em horário compatível com uma refeição chamada almoço! E nada no mundo mundo me alivia mais do que ter certeza de que NÃO HÁ NADA MAIS QUE EU POSSA FAZER a respeito. Agora pertence a cada um lidar com o turbilhão dentro, causado pela insegurança fora, e a falta de previsibilidade sobre quando termina a emergência.
A angústia do "até quando?" talvez seja o que tenha nos igualado e, por isso mesmo, nos tornado mais humanos nesse tempo de exceção. Guardadas as devidas proporções entre o tamanho do impacto no bolso e no planejamento de cada um, e na rede de proteção disponível para enfrentar a calamidade, ficamos no mesmo barco ou nos sentimos assim, enfim. De repente, vem uma clareza sobre a falsidade da ideia de uma pessoa pode estar bem pra valer, enquanto outras morrem de fome, violência, negligência, omissão, ataques de ódio e... coronavírus!
Precisou esse bichinho microscópico saído da China para dissipar essa névoa maluca que nos hipnotizou, turvando nosso entendimento sobre a importância da verdadeira política para a coletividade, aquela com P maiúsculo cujo significado é serviço e pactuação para o bem de todos, sobre o valor capital do diálogo sem desqualificação do outro, sobre a escuta generosa do "outro lado", e o que se passa com quem está num sapato aparentemente diferente do nosso - só que não -, como nos esfrega na cara o corona.
Quanto mais iguais, mais humanos, em todos os matizes dessa palavra que vai dos mais nobres aos mais mesquinhos comportamentos e TODOS, sem exceção, fazem parte de cada um de nós, assim como da coletividade. Os preconceitos caem por terra e algumas verdades negadas começam a gritar e fica mais difícil fechá-las de novo em algum porão....Embora haja os que preferem a morte agarrados à mentira do que admitir erros e fracassos.
Um exemplo: a tecnologia. As pessoas mais velhas a temem e muitas vezes a desprezam, culpando-a pela "degeneração da sociedade", os mais jovens a amam e constroem todos os seus relacionamentos, de diversão ao ganha-pão, em torno dela. E, quando a emergência nos iguala, enxergamos claramente que a tecnologia não pode ter culpa, ela não tem intenção, está aí para nosso uso. E somos nós, humanos, mais uma vez, nas nossas ambiguidade e negação, que a utilizamos para disseminar o ódio, a desinformação, a superficialidade e o consumismo, de pessoas e relacionamentos, inclusive. Mas, em meio ao vírus-ducha, percebemos todo o seu potencial como instrumento de manutenção de vínculos e aproximação de pessoas, como possibilidade de trazer alento, soluções concretas e fundamentais para o avanço da humanidade. Como é da minha natureza, escolho olhar o lado feio disso tudo bem no olho e, sustentando a mirada, observar o que dele vive em mim, escolhendo, cada dia, o outro lado nesse começo interminável, no qual o mundo está mergulhado.
PS - Não pude resistir a postar o registro histórico de quatro das minhas amigas-irmãs em reunião por vídeo no celular ontem à noite. Pela ordem, uma delas fazendo o caçula ninar, outra (sem óculos, né?) espremendo a vista para ver mais pertinho o pessoal do outro lado (imagino), a terceira com esse sorriso meio de lado tão dela, quando algo que vê toca seu coração, e a quarta, guerreira danada com uma baixinha em casa que é um furacão, deixando a faxina quase eterna nessa situação de lado, para encontrar as amigas. O próximo encontro eu não perco, visse?
terça-feira, 24 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIAS 4 E 5
Vista da Yoga na minha varanda
Pois é, o dia quatro me derrubou. Não deu para escrever porque fui atropelada pelas minhas dificuldades em lidar com o momento. Pensa que porque atravessou o oceano vai conseguir cruzar o rio?! Errou. A vida é campeã de trolagem, como dizem os meus filhos. Então, precisei de mais tempo para deixar o ontem vazar e me dei licença para escrever um diário que seria, na verdade, um quarentaeoitoário, se essa palavra existisse, claro! Enfim, sobre o dia quatro, acordei atrasada numa segunda-feira, em teletrabalho e com todas as funções domésticas às quais não estou habituada por fazer. Até aí nada, isso acontece até sem quarentena.
Mas ontem bateu muito diferente, como uma pedrinha jogada no lago, gerando pequenas ondas ao redor de angústia fina. E esse momento de relacionamentos quase integralmente virtuais não ajudou. Invisibilidade sempre me assustou, sobretudo quando sinto ser eu a alma penada. Chame de exibicionismo, se quiser, deve ter um pouco disso mesmo, ou de complexo de primadona - meu padrinho me chamava "Cigana Sandra Rosa Madalena" quando eu tinha apenas quatro anos. Vejam só! Mas a falta do espelho do outro me desnorteia.
Seja o silêncio cheio de formalidades de um amigo, depois de uma briga, preenchido pelas fantasias mais loucas que vivem em mim sobre seus significados. Ou a relação de trabalho que vira uma espécie de incômodo por inexistência de diálogo cara a cara, com algum grau de franqueza e uma via de ida e outra de volta pelo menos. Me magoa não poder dizer seja o que for de frente e não conseguir me perceber nos olhos de quem me vê. Vou virando um fantasma, perambulando, sem saber por onde e nem porquê. Necessito sentido para não perder a raiz.
Felizmente tenho meus dois filhotes tão amados ao meu lado, mas aí enxergar neles minha incapacidade de cozinhar algo que preste dói mais que tudo e foi o tiro de misericórdia de ontem. Eu sei que no dia 2 destes registros jurei aprender a não ser uma mãe assim. Mas, tenham paciência, vinte e dois anos não se mudam em cinco dias... nem que sejam em tempos de vírus-ducha. Aliás, sempre foi um motivo de discussão recorrente entre meu marido e eu essa minha coisa de não sossegar, de não aproveitar as coisas, como quando esses filhotes não respondem ao meu olhar com alguma coisa que me diga: "tudo bem!". E isso é uma fantasia de onipotência, eu sei, mas a maternidade necessita um pouco dessa capa para nos fazer acreditar que podemos dar conta do trabalho, senão fica pesado demais, em muitos momentos.
Mas, hoje cedo, uma amiga me perguntou pelo post de ontem, num grupo de irmãs que temos, com conexões em Brasília, João Pessoa e Madri. Chique, né? E eu respondi dizendo que tinha sido "atropelada" no dia 4. Daí veio uma avalanche de dicas, receitas, textos, consolos, meias-broncas, vídeos de exercícios e uma série de ponderações sobre o meu nível de exigência em relação a mim mesma - sempre. E, logo depois, chega assim, na hora exata, a mensagem inesperada de uma pessoa tão querida trazida pelo meu encontro com o choro, entre tantas que essa música, que é também uma roda de afetos, me trouxe. E dizia:
"Aqui estamos, meu amor e eu, morrendo de saudade dos filhos e netos que sumiram. Um lado meu entende, mas o outro, não, e aprendendo a CONVIVER 24 horas por dia porque não tem nada de "vou dar um pulinho ali". Sabe do que tenho mais saudade? Dos meus meninos nessa idade linda da adolescência. Sempre disse que eles foram excepcionais, assim como são adultos maravilhosos (e são mesmo, porque convivo com os dois!). Marina querida, você é uma inspiração. Queria, neste tempo de "corona", escrever sobre meus filhos e pude brevemente fazê-lo. Você foi o gancho. Obrigada e um beijo".
E esse amor, jorrando pela tela do celular, me trouxe de volta à raiz e ao sentido de tudo. Então, não é tão ruim assim a gente ter essa sensação selvagem de mãe em estado de ameaça iminente pela sua incapacidade de alimentar os filhotes, mesmo que eles tenham 22 e 14 anos e não estejam passando nenhum tipo de privação. E o sentido não está no eventual silêncio ou invisibilidade nos quais caímos vez por outra, por alguma razão que não nos pertence, mas no afeto que espelha nosso valor como ser humano, e a certeza de que, mesmo isolados, jamais estamos sós quando amamos.
Pois é, o dia quatro me derrubou. Não deu para escrever porque fui atropelada pelas minhas dificuldades em lidar com o momento. Pensa que porque atravessou o oceano vai conseguir cruzar o rio?! Errou. A vida é campeã de trolagem, como dizem os meus filhos. Então, precisei de mais tempo para deixar o ontem vazar e me dei licença para escrever um diário que seria, na verdade, um quarentaeoitoário, se essa palavra existisse, claro! Enfim, sobre o dia quatro, acordei atrasada numa segunda-feira, em teletrabalho e com todas as funções domésticas às quais não estou habituada por fazer. Até aí nada, isso acontece até sem quarentena.
Mas ontem bateu muito diferente, como uma pedrinha jogada no lago, gerando pequenas ondas ao redor de angústia fina. E esse momento de relacionamentos quase integralmente virtuais não ajudou. Invisibilidade sempre me assustou, sobretudo quando sinto ser eu a alma penada. Chame de exibicionismo, se quiser, deve ter um pouco disso mesmo, ou de complexo de primadona - meu padrinho me chamava "Cigana Sandra Rosa Madalena" quando eu tinha apenas quatro anos. Vejam só! Mas a falta do espelho do outro me desnorteia.
Seja o silêncio cheio de formalidades de um amigo, depois de uma briga, preenchido pelas fantasias mais loucas que vivem em mim sobre seus significados. Ou a relação de trabalho que vira uma espécie de incômodo por inexistência de diálogo cara a cara, com algum grau de franqueza e uma via de ida e outra de volta pelo menos. Me magoa não poder dizer seja o que for de frente e não conseguir me perceber nos olhos de quem me vê. Vou virando um fantasma, perambulando, sem saber por onde e nem porquê. Necessito sentido para não perder a raiz.
Felizmente tenho meus dois filhotes tão amados ao meu lado, mas aí enxergar neles minha incapacidade de cozinhar algo que preste dói mais que tudo e foi o tiro de misericórdia de ontem. Eu sei que no dia 2 destes registros jurei aprender a não ser uma mãe assim. Mas, tenham paciência, vinte e dois anos não se mudam em cinco dias... nem que sejam em tempos de vírus-ducha. Aliás, sempre foi um motivo de discussão recorrente entre meu marido e eu essa minha coisa de não sossegar, de não aproveitar as coisas, como quando esses filhotes não respondem ao meu olhar com alguma coisa que me diga: "tudo bem!". E isso é uma fantasia de onipotência, eu sei, mas a maternidade necessita um pouco dessa capa para nos fazer acreditar que podemos dar conta do trabalho, senão fica pesado demais, em muitos momentos.
Mas, hoje cedo, uma amiga me perguntou pelo post de ontem, num grupo de irmãs que temos, com conexões em Brasília, João Pessoa e Madri. Chique, né? E eu respondi dizendo que tinha sido "atropelada" no dia 4. Daí veio uma avalanche de dicas, receitas, textos, consolos, meias-broncas, vídeos de exercícios e uma série de ponderações sobre o meu nível de exigência em relação a mim mesma - sempre. E, logo depois, chega assim, na hora exata, a mensagem inesperada de uma pessoa tão querida trazida pelo meu encontro com o choro, entre tantas que essa música, que é também uma roda de afetos, me trouxe. E dizia:
"Aqui estamos, meu amor e eu, morrendo de saudade dos filhos e netos que sumiram. Um lado meu entende, mas o outro, não, e aprendendo a CONVIVER 24 horas por dia porque não tem nada de "vou dar um pulinho ali". Sabe do que tenho mais saudade? Dos meus meninos nessa idade linda da adolescência. Sempre disse que eles foram excepcionais, assim como são adultos maravilhosos (e são mesmo, porque convivo com os dois!). Marina querida, você é uma inspiração. Queria, neste tempo de "corona", escrever sobre meus filhos e pude brevemente fazê-lo. Você foi o gancho. Obrigada e um beijo".
E esse amor, jorrando pela tela do celular, me trouxe de volta à raiz e ao sentido de tudo. Então, não é tão ruim assim a gente ter essa sensação selvagem de mãe em estado de ameaça iminente pela sua incapacidade de alimentar os filhotes, mesmo que eles tenham 22 e 14 anos e não estejam passando nenhum tipo de privação. E o sentido não está no eventual silêncio ou invisibilidade nos quais caímos vez por outra, por alguma razão que não nos pertence, mas no afeto que espelha nosso valor como ser humano, e a certeza de que, mesmo isolados, jamais estamos sós quando amamos.
domingo, 22 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 3
Foto: Ana Flora Caminha
Amo conversar, mas tenho apreciado muito o silêncio cheio de sons dos últimos dias. Os passarinhos ao redor da minha casa estão fazendo uma rave, cantando como nunca, o dia inteiro. Como a natureza foi minha maior professora e confidente na minha quarentena pessoal, iniciada com a perda súbita do meu marido e amor, há pouco mais de cinco anos, estou sempre ligada no que ela tem a dizer. Sim, sou do tipo que converso com as plantas e acho que elas me respondem, sem palavras, pelo menos por enquanto (fiquem tranquilos)! Tendo acalmado meu pânico inicial de não dar conta da gestão das tarefas domésticas, pude sair um pouco da atividade insana dos últimos dias de colocar a casa em ordem para passar o inverno, para escutar um pouco mais.
Aí lembrei da minha viagem recente com meus filhos às Cataratas do Iguaçu, no início deste mês de março, e do quanto me impressionou o barulho das pessoas e uma certa insanidade com relação às fotos e selfies, diante de um dos cenários mais imponentes do mundo. Tinha estado ali em 2001, quando ainda se podia ir de bote embaixo da cachoeira principal, e fui tomada na época de profunda adoração, no sentido religioso mesmo da palavra, por aquelas águas em queda livre sobre as rochas. Sempre quis levar meus filhos até lá para que pudessem experimentar essa sensação do silêncio da PAZ interior diante do que é tão maior do que nós. Uma das experiências mais reais de plenitude em mim guardadas.
Mas havia tanta gente, barulhos de helicópteros sobrevoando com turistas em vista panorâmica das águas e flashes infinitos, num volume semelhante ao das Cataratas... que não deu para revisitar aquele lugar dentro de mim. Até porque o nível do rio Iguaçu estava muito baixo e o volume de água nas quedas não chegava a um terço do esperado para essa época do ano. Ainda assim, a natureza segue impressionante, mas os visitantes não se deixam ouvir sua voz porque, em muitos casos, nem prestam atenção, preocupados em reproduzirem a foto postada por não sei quem que bombou de likes no Instagram.
Mas o que tenho pensado, nesses dias de isolamento dos seres humanos, é que a natureza PRECISAVA demais desse respiro. Fomos longe demais em tanta coisa, sem nos darmos conta, por incapacidade ou medo de ouvir o que nos diz o silêncio dentro e fora de nós. Consumo demais, sem necessidade real, barulho demais, movimentação em excesso, foto então... O que será que faz de nós criaturas incapazes de simplesmente apreciar cada coisa no momento em que nos deparamos com ela? E de guardar isso, no coração apenas, onde toda a essência de uma vida se abriga, sempre, quer a gente entenda e aceite isso ou não.
E quando o vírus-ducha nos recolhe às nossas casas, e quem sabe também ao nosso lugar nesse planeta, a natureza toma conta e dá show: no canto dos passarinhos, no ninho ao lado da janela da casa da minha amiga querida, cuja foto ilustra esse post, nos canais de Veneza, no ar mais puro na China, em São Paulo e em todas as outras grandes cidades, finalmente livres da sua atividade insana!
A questão agora é: o que cada um e a sociedade vão fazer desse silêncio cheio de sons?! Os registros das janelas, disparados pelas redes sociais para manter o contato com o outro e mostrar o colapso do nosso modo de vida, mundo afora, vão servir só para reforçar o medo do porvir? Da doença ou da solidão, do resultado das nossas próprias escolhas (ou medo delas), gritando dentro de cada casa em quarentena, quando não se pode fugir de quem nos acompanha, nem do tipo de relação estabelecida com eles? "E depois?", me pergunto. E sei que a melhor resposta virá dos passarinhos e da conexão entre eles e a essência humana.
Amo conversar, mas tenho apreciado muito o silêncio cheio de sons dos últimos dias. Os passarinhos ao redor da minha casa estão fazendo uma rave, cantando como nunca, o dia inteiro. Como a natureza foi minha maior professora e confidente na minha quarentena pessoal, iniciada com a perda súbita do meu marido e amor, há pouco mais de cinco anos, estou sempre ligada no que ela tem a dizer. Sim, sou do tipo que converso com as plantas e acho que elas me respondem, sem palavras, pelo menos por enquanto (fiquem tranquilos)! Tendo acalmado meu pânico inicial de não dar conta da gestão das tarefas domésticas, pude sair um pouco da atividade insana dos últimos dias de colocar a casa em ordem para passar o inverno, para escutar um pouco mais.
Aí lembrei da minha viagem recente com meus filhos às Cataratas do Iguaçu, no início deste mês de março, e do quanto me impressionou o barulho das pessoas e uma certa insanidade com relação às fotos e selfies, diante de um dos cenários mais imponentes do mundo. Tinha estado ali em 2001, quando ainda se podia ir de bote embaixo da cachoeira principal, e fui tomada na época de profunda adoração, no sentido religioso mesmo da palavra, por aquelas águas em queda livre sobre as rochas. Sempre quis levar meus filhos até lá para que pudessem experimentar essa sensação do silêncio da PAZ interior diante do que é tão maior do que nós. Uma das experiências mais reais de plenitude em mim guardadas.
Mas havia tanta gente, barulhos de helicópteros sobrevoando com turistas em vista panorâmica das águas e flashes infinitos, num volume semelhante ao das Cataratas... que não deu para revisitar aquele lugar dentro de mim. Até porque o nível do rio Iguaçu estava muito baixo e o volume de água nas quedas não chegava a um terço do esperado para essa época do ano. Ainda assim, a natureza segue impressionante, mas os visitantes não se deixam ouvir sua voz porque, em muitos casos, nem prestam atenção, preocupados em reproduzirem a foto postada por não sei quem que bombou de likes no Instagram.
Mas o que tenho pensado, nesses dias de isolamento dos seres humanos, é que a natureza PRECISAVA demais desse respiro. Fomos longe demais em tanta coisa, sem nos darmos conta, por incapacidade ou medo de ouvir o que nos diz o silêncio dentro e fora de nós. Consumo demais, sem necessidade real, barulho demais, movimentação em excesso, foto então... O que será que faz de nós criaturas incapazes de simplesmente apreciar cada coisa no momento em que nos deparamos com ela? E de guardar isso, no coração apenas, onde toda a essência de uma vida se abriga, sempre, quer a gente entenda e aceite isso ou não.
E quando o vírus-ducha nos recolhe às nossas casas, e quem sabe também ao nosso lugar nesse planeta, a natureza toma conta e dá show: no canto dos passarinhos, no ninho ao lado da janela da casa da minha amiga querida, cuja foto ilustra esse post, nos canais de Veneza, no ar mais puro na China, em São Paulo e em todas as outras grandes cidades, finalmente livres da sua atividade insana!
A questão agora é: o que cada um e a sociedade vão fazer desse silêncio cheio de sons?! Os registros das janelas, disparados pelas redes sociais para manter o contato com o outro e mostrar o colapso do nosso modo de vida, mundo afora, vão servir só para reforçar o medo do porvir? Da doença ou da solidão, do resultado das nossas próprias escolhas (ou medo delas), gritando dentro de cada casa em quarentena, quando não se pode fugir de quem nos acompanha, nem do tipo de relação estabelecida com eles? "E depois?", me pergunto. E sei que a melhor resposta virá dos passarinhos e da conexão entre eles e a essência humana.
sábado, 21 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 2
Estranho amanhecer na mesma cama, casa, lugar, na companhia das mesmas pessoas, e parecer esquisito. Sábado. Dia de ficar em casa mesmo. Mas a quantidade de coisas a aprender e rotinas a refazer entregam a anormalidade de hoje. As mensagens são frenéticas nos grupos de whattsapp, de notícia a meme e playlist, aos convites para participar de conferências nos mais diversos aplicativos. Hoje, no entanto, me chamou a atenção a maneira como tudo isso chegou para os meus filhotes.
O mais novo adora ficar em casa de pijama, dias a fio, sem sair, jogando online com os amigos, em tempos normais. Mas acordou com o "ombrinho caído" às 15h30, quando eu finalmente manejei minhas tarefas domésticas a ponto de conseguir botar comida da mesa. Afinal, estou bem no começo do meu treinamento, iniciado ontem, sob decreto do vírus. A irmã acordou antes e estava decifrando comigo, com a orientação da minha irmã do meio, ao telefone, como separar as roupas sujas e usar a máquina de lavar. Muitas dúvidas, mas ela felizmente estava muito segura e detalhista, como sempre, e respondeu todas elas tim-tim por tim-tim.
O meu pijaminha senta finalmente na mesa e olha para o nada, de cara amarrada. Mesmo com a chegada da adolescência há algum tempo e a "cara de bunda permanente", natural nessa fase da vida, como diz a irmã dele, farejei algo errado. Olhando fixamente para o prato de comida, confessou: "mãe, esse negócio da comida tá me matando". Magro como ele só, tem um paladar dos mais apurados desde pequeno, e a exigência com relação ao arroz com feijão faz com que só goste dessa mistura preparada por muito pouca gente, uma delas, minha querida assistente (felizmente) ou sua mãe, que veio antes dela, de quem falei ontem, que está em casa. Ciente da minha limitação no campo do arroz com feijão, fiquei quieta, pensando em como responder.
A irmã, desde cedo, entre irritada e cooperativa com as tarefas a realizar, seguiu comendo e não reagiu. O que também não me pareceu normal, pois os dois vivem se provocando e implicando mutuamente. Ela também fica muito alterada desde pequena quanto tem fome e acha nada do que goste para comer. E agora não tem jeito, porque só temos nós três para cozinhar e ponto. Aí me dei conta de como essa quarentena está ensinando algo fundamental sobre a vida para os meus filhos. Compensando, inclusive, um dos meus pontos fracos como mãe, confesso, Mais um! Sou muito protetora e mimadora. Um amigo aliás, em vias de se tornar pai pela primeira vez, fica impressionado demais com isso e me diz sempre: "você é muito mãe!", o que só pode significar exatamente o que acabei de dizer e é a mais pura verdade.
Mas ensinar aos filhos o sacrifício necessário em vários momentos da vida faz parte das lições fundamentais para torná-los capazes de enfrentar os desafios, maiores ou menores, e as FRUSTRAÇÕES, que fazem parte da vida de todo ser humano. E olha que ter que comer o que a mãe que não sabe cozinhar prepara só é sofrimento para filhos de uma Patricinha do Lago Sul, como eu, que fique MUUUITO claro! Mas, ainda assim, faz parte do aprendizado deles e meu também, nessa quarentena. Porque eu preciso aceitar que é assim, sem transformar isso em algo de outro mundo, que não é e nem nunca foi.
Então, disse apenas: "Tem que enfrentar o arroz com feijão da mamãe mesmo, para encarar a faxina no banheiro e a pia de louça, né?" e pisquei. Ele riu, daquele jeito só dele, com o olho bem miúdo e ainda assim soltando luz, vinda daquele sorriso iluminado como do pai dele. E eu soube, então, que estaremos bem. E, imediatamente, recebi a confirmação da mais velha que, ao ouvir minha resposta, me lançou um dos seus 1000 olhares, cada um com um significado bem específico e, no caso, com uma mensagem bem clara de apoio. "Verdade" seria o nome desse olhar, se os tivesse catalogado em algum lugar. Terminou o prato e declarou que ia tirar uma hora de folga para depois estender a roupa que está na escala de tarefas que fizemos e penduramos na geladeira ontem. Seguem os ensinamentos do vírus com nome de ducha por aqui.
sexta-feira, 20 de março de 2020
DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 1
Há coisas que deveríamos saber, mas só os eventos irreversíveis nos fazem lembrar. Não é minha primeira quarentena. Estive aqui antes, mas sozinha, porque o meu mundo tinha terminado, enquanto o resto da humanidade seguia na mesma ilusão na qual eu vivia antes da morte que abalou o meu chão particular. Neste 2020, que chegou botando para ferver, pelo menos estou em quarentena na companhia de milhões de pessoas, tão perplexas, incertas, impotentes e amedrontadas como eu, o que, de alguma maneira muito egoísta, é verdade, me consola. Porque ficar de quarentena, enquanto o baile segue sem notarem sua ausência, traz um certo recalque, não vou negar.
Como na minha ficha lá em cima deve estar escrito que eu sou do tipo que, no passeio de ski-bunda nas dunas pede sempre para ser "com emoção", embora eu NUNCA escolha isso nos passeios, a quarentena coincidiu com a necessidade imperativa de buscar novas formas de ganhar o sustento. O que não me torna mais especial do que nenhum dos outros milhões de habitantes do globo, na mesma exata situação. Mas, como meu barco de papel tem feito manobras radicais por sobre ondas havaianas, tenho a audácia de acreditar ser capaz de, ao menos, tentar, com alguma chance de sucesso, surfar nela e viver para contar a história.
E, só para o caso de eu não conseguir, deixo tudo registrado nesse diário de mais uma travessia. Começo contando a história da morte de uma "Patricinha do Lago Sul". No caso, eu, apesar da imensa vergonha que sinto dessa confissão. Acordo hoje sem a menor ideia de como alimentar meus filhos e eu mesma, me debatendo com questões sobre como ligar minha própria máquina de lavar roupa, fazer arroz e feijão e dar faxina no banheiro.
Fui abençoada, ao longo da vida, mesmo nas maiores intempéries de perdas e dificuldades pessoais, com a presença constante de um anjo que entra e sai da minha casa e deixa tudo tão perfeito, que eu nunca tive que aprender a fazer coisas essenciais, repetidas todo dia, sem interrupção, 365 dias por ano, numa casa, para que fique limpa, arrumada e com aquele cheiro delicioso vindo da panela na hora das refeições. Para minha sorte, minha falta de habilidades domésticas e meu berço de ouro não me impediram de ter uma relação de amor com as mulheres que exerceram esse papel de anjo.
E nem o coronavírus, que destruiu a economia mundial e botou em xeque a política e os sistemas de saúde de todo o planeta, pode corroer o valor dessa relação! Ela me salvou, de longe, sem eu pedir, mandando áudios contando onde estão as coisas no meu próprio congelador, e o que fazer com elas para não passar fome em casa, com a dispensa cheia. E ela, que vive dizendo que eu sou muito sabida porque vez ou outra respondo alguma pergunta sobre INSS, direitos ou coisas assim, me deixa maravilhada com o seu saber! E, para minha felicidade e dos meus filhos, mesmo à distância, cuida de nós, como eu sempre tento cuidar dela e da sua família, na medida do que posso. Então, vamos sobreviver à quarentena, cada uma na sua casa, segurando uma na mão da outra, como quando fiquei viúva, depois perdi o emprego e o filho dela foi preso, o pai adoeceu e morreu, e também quando a filha dela se formou em Administração, dia desses, sendo a primeira da família com diploma de curso superior. E, quem sabe quando a vida volte ao normal e ela retorne, a gente possa mostrar a casa inteira e bem cuidada a ela, para que tenha orgulho de nós e de tudo o que aprendemos. É algo a cultivar como meta nessa maratona que só começou.
Como na minha ficha lá em cima deve estar escrito que eu sou do tipo que, no passeio de ski-bunda nas dunas pede sempre para ser "com emoção", embora eu NUNCA escolha isso nos passeios, a quarentena coincidiu com a necessidade imperativa de buscar novas formas de ganhar o sustento. O que não me torna mais especial do que nenhum dos outros milhões de habitantes do globo, na mesma exata situação. Mas, como meu barco de papel tem feito manobras radicais por sobre ondas havaianas, tenho a audácia de acreditar ser capaz de, ao menos, tentar, com alguma chance de sucesso, surfar nela e viver para contar a história.
E, só para o caso de eu não conseguir, deixo tudo registrado nesse diário de mais uma travessia. Começo contando a história da morte de uma "Patricinha do Lago Sul". No caso, eu, apesar da imensa vergonha que sinto dessa confissão. Acordo hoje sem a menor ideia de como alimentar meus filhos e eu mesma, me debatendo com questões sobre como ligar minha própria máquina de lavar roupa, fazer arroz e feijão e dar faxina no banheiro.
Fui abençoada, ao longo da vida, mesmo nas maiores intempéries de perdas e dificuldades pessoais, com a presença constante de um anjo que entra e sai da minha casa e deixa tudo tão perfeito, que eu nunca tive que aprender a fazer coisas essenciais, repetidas todo dia, sem interrupção, 365 dias por ano, numa casa, para que fique limpa, arrumada e com aquele cheiro delicioso vindo da panela na hora das refeições. Para minha sorte, minha falta de habilidades domésticas e meu berço de ouro não me impediram de ter uma relação de amor com as mulheres que exerceram esse papel de anjo.
E nem o coronavírus, que destruiu a economia mundial e botou em xeque a política e os sistemas de saúde de todo o planeta, pode corroer o valor dessa relação! Ela me salvou, de longe, sem eu pedir, mandando áudios contando onde estão as coisas no meu próprio congelador, e o que fazer com elas para não passar fome em casa, com a dispensa cheia. E ela, que vive dizendo que eu sou muito sabida porque vez ou outra respondo alguma pergunta sobre INSS, direitos ou coisas assim, me deixa maravilhada com o seu saber! E, para minha felicidade e dos meus filhos, mesmo à distância, cuida de nós, como eu sempre tento cuidar dela e da sua família, na medida do que posso. Então, vamos sobreviver à quarentena, cada uma na sua casa, segurando uma na mão da outra, como quando fiquei viúva, depois perdi o emprego e o filho dela foi preso, o pai adoeceu e morreu, e também quando a filha dela se formou em Administração, dia desses, sendo a primeira da família com diploma de curso superior. E, quem sabe quando a vida volte ao normal e ela retorne, a gente possa mostrar a casa inteira e bem cuidada a ela, para que tenha orgulho de nós e de tudo o que aprendemos. É algo a cultivar como meta nessa maratona que só começou.
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