sexta-feira, 20 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 1

Há coisas que deveríamos saber, mas só os eventos irreversíveis nos fazem lembrar. Não é minha primeira quarentena. Estive aqui antes, mas sozinha, porque o meu mundo tinha terminado, enquanto o resto da humanidade seguia na mesma ilusão na qual eu vivia antes da morte que abalou o meu chão particular. Neste 2020, que chegou botando para ferver, pelo menos estou em quarentena na companhia de milhões de pessoas, tão perplexas, incertas, impotentes e amedrontadas como eu, o que, de alguma maneira muito egoísta, é verdade, me consola. Porque ficar de quarentena, enquanto o baile segue sem notarem sua ausência, traz um certo recalque, não vou negar.

Como na minha ficha lá em cima deve estar escrito que eu sou do tipo que, no passeio de ski-bunda nas dunas pede sempre para ser "com emoção", embora eu NUNCA escolha isso nos passeios, a quarentena coincidiu com a necessidade imperativa de buscar novas formas de ganhar o sustento. O que não me torna mais especial do que nenhum dos outros milhões de habitantes do globo, na mesma exata situação. Mas, como meu barco de papel tem feito manobras radicais por sobre ondas havaianas, tenho a audácia de acreditar ser capaz de, ao menos, tentar, com alguma chance de sucesso, surfar nela e viver para contar a história.

E, só para o caso de eu não conseguir, deixo tudo registrado nesse diário de mais uma travessia. Começo contando a história da morte de uma "Patricinha do Lago Sul". No caso, eu, apesar da imensa vergonha que sinto dessa confissão. Acordo hoje sem a menor ideia de como alimentar meus filhos e eu mesma, me debatendo com questões sobre como ligar minha própria máquina de lavar roupa, fazer arroz e feijão e dar faxina no banheiro.

Fui abençoada, ao longo da vida, mesmo nas maiores intempéries de perdas e dificuldades pessoais, com a presença constante de um anjo que entra e sai da minha casa e deixa tudo tão perfeito, que eu nunca tive que aprender a fazer coisas essenciais, repetidas todo dia, sem interrupção, 365 dias por ano, numa casa, para que fique limpa, arrumada e com aquele cheiro delicioso vindo da panela na hora  das refeições. Para minha sorte, minha falta de habilidades domésticas e meu berço de ouro não me impediram de ter uma relação de amor com as mulheres que exerceram esse papel de anjo.

E nem o coronavírus, que destruiu a economia mundial e botou em xeque a política e os sistemas de saúde de todo o planeta, pode corroer o valor dessa relação! Ela me salvou, de longe, sem eu pedir, mandando áudios contando onde estão as coisas no meu próprio congelador, e o que fazer com elas para não passar fome em casa, com a dispensa cheia. E ela, que vive dizendo que eu sou muito sabida porque vez ou outra respondo alguma pergunta sobre INSS, direitos ou coisas assim, me deixa maravilhada com o seu saber! E, para minha felicidade e dos meus filhos, mesmo à distância, cuida de nós, como eu sempre tento cuidar dela e da sua família, na medida do que posso. Então, vamos sobreviver à quarentena, cada uma na sua casa, segurando uma na mão da outra, como quando fiquei viúva, depois perdi o emprego e o filho dela foi preso, o pai adoeceu e morreu, e também quando a filha dela se formou em Administração, dia desses, sendo a primeira da família com diploma de curso superior. E, quem sabe quando a vida volte ao normal e ela retorne, a gente possa mostrar a casa inteira e bem cuidada a ela, para que tenha orgulho de nós e de tudo o que aprendemos. É algo a cultivar como meta nessa maratona que só começou.





6 comentários:

  1. Pelo menos uma coisa boa o Corona trouxe! Estava com saudades de ler minha irmã vivendo e escrevendo.

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  2. Muito bom ler os seus textos de novo! Sua sensibilidade vai nos fazer companhia nestes tempos difíceis.

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  3. Tô atrasada. Começando a sua quarentena hoje. Sei que vou adorar e me fortalecer. Estarei navegando nos seus textos. Bjs

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  4. Coisa linda essa minha cunhada-irmã atrasadinha. Beijos

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