domingo, 29 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIAS 9 E 10

                                          Luvas de faxina

Nada me impressiona mais que o tempo e suas revelações. No baralho mítico de tarô, que costumo jogar, a carta do "eremita", associada em outros decks com o número 9 (dia de ontem do diário), é Cronos. Pai de Zeus e de todos os mais poderosos deuses do Olimpo. Existia antes de tudo e, embora tenha sido morto pelos filhos, depois de tê-los engolido um a um ao nascer, para não perder a supremacia do poder, segue como a presença mais persistente no nosso universo humano. Talvez por ser uma criação e necessidade exclusivamente nossa, de marcar a passagem sobre a terra e assim termos certeza de termos existido. Dez dias completos de isolamento social ou quarentena me trouxeram a visão completa do meu ponto fraco desnudada pelo tempo: a maternidade.

Disfarçada sob a capa de desespero - real, diga-se de passagem - pela minha falta de talento na cozinha, estava, na verdade, o meu maior desafio desde o nascimento dos meus filhotes e antes até, quando assumi essa função com relação às minhas irmãs mais novas, após a morte da minha mãe: prover TODAS as necessidades dessas criaturas. E o tempo, na sua infinita capacidade de desgastar até esvair os véus e disfarces humanos, me mostrou o começo, novamente. A cobra que morde o próprio rabo, outro símbolo recorrente do tempo. Quando, independente de coronavírus, luto, desemprego, e tudo mais ao redor, existia uma menina, depois uma mulher, incapaz de aceitar limites sobre sua capacidade de produzir o bem-estar no outro e no grupo familiar.

Esse ser primitivo da minha maternidade não suporta tudo o que sente como fracasso, muito embora, em grande parte das vezes não o seja, e a racionalidade de hoje consegue perceber a diferença, felizmente. O treino brutal de receber do além um bebê indefeso, sem fala e sem capacidade de prover suas próprias necessidades, tornou esse mecanismo primitivo em mim numa força sobrenatural. Mas o tempo treina, nos torna excelentes em algo e aí inverte a brincadeira, completamente. Porque ele é círculo e não linha reta, lembram? E, desde há algum tempo - com a emancipação completa das minhas irmãs em mulheres adultas, e a morte do meu amor e todas as suas consequências, e depois ou junto com isso tudo, o desenvolvimento dos meus filhos em adolescentes e, no caso da mais velha, adulta -, tenho lutado com a impotência diante de um número cada vez maior de necessidades vitais da parte deles, as quais não posso e jamais poderei prover. Essas que são mais complexas do que comer, dormir, dar banho, vestir, aquecer etc. Aquelas que fazem parte do processo de individuação deles, suas batalhas, escolhas, dores e delícias de serem quem são, como diria Caetano.

E conviver, todo dia, com o fato de que não consigo alimentar esses filhotes como eu gostaria, que teoricamente faz parte do grupo de necessidades às quais eu DEVERIA ser capaz de prover, me trouxe uma opressora e avassaladora sensação de fracasso. E isso, para ser muito sincera, tem sido o maior dreno da minha energia e a maior fonte de ansiedade nesse período. Algo sem qualquer conexão com o vírus-ducha.

Mas hoje acordei consciente e disposta a me entregar ao treino de deixar cada um deles fazer suas escolhas e lidarem com elas, inclusive à mesa, dentro do contexto atual de restrição de outras comidas melhor preparadas. E detalhe do nível de dificuldade da tarefa: NÃO SOFRER COM ISSO. Porque não tem drama, ao contrário, tem processo de crescimento e amadurecimento para todo mundo, eles e eu, inclusive. Morrer de fome com dispensa cheia não tem jeito. E, resguardada essa condição, me parece a melhor maneira de aliviar essa pressão no meu peito, que pode tornar o isolamento com quem eu mais amo no mundo em algo opressor para além do que é, por si só, perder a liberdade de ir e vir, sem culpa.

PS - Aos que me seguem nestes registros, quero comunicar outra decisão soprada pelo tempo em meu ouvido. Nem tudo o que se escreve num diário serve para publicação e, muitas vezes, precisa tempo (sempre ele!) para depurar o que se quer comunicar. Portanto, vou escrevendo aqui, a partir de hoje (dia 10), na medida em que tiver algo maduro o suficiente para compartilhar. Aqui também, no blogue, trata-se de maratona, não corrida de tiro.

Um comentário:

  1. Seguindo a postagem de comentários aos textos, enviados para mim, em particular por mensagem, segue esse, lindo da amiga e escritora Adriana Manfredini, direto de Seattle, nos EUA. Autora de "Crônicas de Essepê".

    "Oi, Marina, tudo bem por aí? Por aqui, estamos entrando na quinta semana de quarentena, que provavelmente se estenderá por mais um mês, agora que os casos estão explodindo nos EUA. Estou acompanhando as postagens do seu blog e gostando muito.
    Não sabia que cozinhar não é muito o seu forte. Ao ler as passagens que você fala sobre isso, lembrei um pouco da minha mãe, que sempre teve pavor de cozinhar (algo que mudou um pouco depois que ela fez 60 anos). Quando eu era criança/adolescente, eu a ouvia dizer que não via a hora que a NASA inventasse pílulas para substituir comida e vendesse em supermercado. Eram os anos 1980. Eu, que comecei a cozinhar com 4 anos vendo minha avó cozinhar, e depois a cozinheira, ficava chocada quando eu ouvia isso. Em vez de ter uma empregada doméstica, minha mãe optou por uma cozinheira. Minha avó ensinou essa mulher a cozinhar e ela ficou quase 30 anos trabalhando na casa dos meus pais, até se aposentar. Minha mãe cozinhava aos domingos e nas folgas da cozinheira. Nesses dias de folga da cozinheira, geralmente ela preparava arroz com frango, à moda portuguesa, tudo numa panela para facilitar. E de acompanhamento, escarola recheada, um prato que ela aprendeu com minha avó, que aprendeu com a mãe (minha bisavó), que aprendeu com uma vizinha. Não moro com meus pais já há quase 30 anos, mas sempre que os visito, são esses os pratos que eu peço para minha mãe fazer. Principalmente a escarola recheada, que é um prato que nunca vi mais ninguém fazer."

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