terça-feira, 24 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIAS 4 E 5

                                          Vista da Yoga na minha varanda

Pois é, o dia quatro me derrubou. Não deu para escrever porque fui atropelada pelas minhas dificuldades em lidar com o momento. Pensa que porque atravessou o oceano vai conseguir cruzar o rio?! Errou. A vida é campeã de trolagem, como dizem os meus filhos. Então, precisei de mais tempo para deixar o ontem vazar e me dei licença para escrever um diário que seria, na verdade, um quarentaeoitoário, se essa palavra existisse, claro! Enfim, sobre o dia quatro, acordei atrasada numa segunda-feira, em teletrabalho e com todas as funções domésticas às quais não estou habituada por fazer. Até aí nada, isso acontece até sem quarentena.

Mas ontem bateu muito diferente, como uma pedrinha jogada no lago, gerando pequenas ondas ao redor de angústia fina. E esse momento de relacionamentos quase integralmente virtuais não ajudou. Invisibilidade sempre me assustou, sobretudo quando sinto ser eu a alma penada. Chame de exibicionismo, se quiser, deve ter um pouco disso mesmo, ou de complexo de primadona - meu padrinho me chamava "Cigana Sandra Rosa Madalena" quando eu tinha apenas quatro anos. Vejam só! Mas a falta do espelho do outro me desnorteia.

Seja o silêncio cheio de formalidades de um amigo, depois de uma briga, preenchido pelas fantasias mais loucas que vivem em mim sobre seus significados. Ou a relação de trabalho que vira uma espécie de incômodo por inexistência de diálogo cara a cara, com algum grau de franqueza e uma via de ida e outra de volta pelo menos. Me magoa não poder dizer seja o que for de frente e não conseguir me perceber nos olhos de quem me vê. Vou virando um fantasma, perambulando, sem saber por onde e nem porquê. Necessito sentido para não perder a raiz.

Felizmente tenho meus dois filhotes tão amados ao meu lado, mas aí enxergar neles minha incapacidade de cozinhar algo que preste dói mais que tudo e foi o tiro de misericórdia de ontem. Eu sei que no dia 2 destes registros jurei aprender a não ser uma mãe assim. Mas, tenham paciência, vinte e dois anos não se mudam em cinco dias... nem que sejam em tempos de vírus-ducha. Aliás, sempre foi um motivo de discussão recorrente entre meu marido e eu essa minha coisa de não sossegar, de não aproveitar as coisas, como quando esses filhotes não respondem ao meu olhar com alguma coisa que me diga: "tudo bem!". E isso é uma fantasia de onipotência, eu sei, mas a maternidade necessita um pouco dessa capa para nos fazer acreditar que podemos dar conta do trabalho, senão fica pesado demais, em muitos momentos.

Mas, hoje cedo, uma amiga me perguntou pelo post de ontem, num grupo de irmãs que temos, com conexões em Brasília, João Pessoa e Madri. Chique, né? E eu respondi dizendo que tinha sido "atropelada" no dia 4. Daí veio uma avalanche de dicas, receitas, textos, consolos, meias-broncas, vídeos de exercícios e uma série de ponderações sobre o meu nível de exigência em relação a mim mesma - sempre. E, logo depois, chega assim, na hora exata, a mensagem inesperada de uma pessoa tão querida trazida pelo meu encontro com o choro, entre tantas que essa música, que é também uma roda de afetos, me trouxe. E dizia:

"Aqui estamos, meu amor e eu, morrendo  de  saudade dos filhos e netos que sumiram. Um lado meu  entende, mas o outro, não, e aprendendo a CONVIVER 24 horas por dia porque não tem nada de "vou dar um pulinho ali". Sabe do que tenho mais saudade? Dos meus meninos nessa idade linda da adolescência. Sempre disse que eles foram excepcionais, assim como são adultos maravilhosos (e são mesmo, porque convivo com os dois!). Marina querida, você é uma inspiração. Queria, neste tempo de "corona", escrever sobre meus filhos e pude brevemente fazê-lo. Você foi o gancho. Obrigada e um beijo".

E esse amor, jorrando pela tela do celular, me trouxe de volta à raiz e ao sentido de tudo. Então, não é tão ruim assim a gente ter essa sensação selvagem de mãe em estado de ameaça iminente pela sua incapacidade de alimentar os filhotes, mesmo que eles tenham 22 e 14 anos e não estejam passando nenhum tipo de privação. E o sentido não está no eventual silêncio ou invisibilidade nos quais caímos vez por outra, por alguma razão que não nos pertence, mas no afeto que espelha nosso valor como ser humano, e a certeza de que, mesmo isolados, jamais estamos sós quando amamos.


2 comentários:

  1. Recebi alguns lindos comentários sobre esse diário por mensagem, e fui autorizada a publicar aqui.

    Primeiro, Lourenço Flores:
    "Acabei de ler o quarentaeoitoário (maravilhoso). É impossível não se identificar com a “angústia fina”, o temor do apagamento fantasmagórico".

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  2. E agora minha amada-irmã, Tatá:
    "Tava lendo seu quarentaeoitoário e pensando... não estamos sozinhos mesmo!
    Ontem recebi dois presentes lindos, um seguido do outro. Perto das 9h da manhã, o porteiro me interfona e avisa que a Marli deixou uma sacola pra mim lá embaixo. Ele pergunta se eu quero que ele suba pra me entregar, já que estou na quarentena, o que já achei de uma gentileza incrível! Imagina se ele for entregar encomendas para os 72 moradores do prédio! Desci. Eram duas sacolas cheias de guloseimas que ela mesma fez e separou um pouco pra mim, preocupada com a
    minha alimentação e a minha falta de dotes culinários. Cinco minutos depois que eu subi, o porteiro interfona de novo, já rindo. Dessa vez foi a Beta que me deixou uma sacola com duas mini garrafas de espumante e um brownie, com uma folhinha de papel com um coração desenhado pela Bia e um bilhetinho que dizia “Para criar momentos de relax. Tamo junto”. Aí a gente percebe que realmente não tem nada mais importante na vida que o amor!"

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