quarta-feira, 4 de novembro de 2020

 DIÁRIO DE QUARENTENA (A PERDER DE VISTA) - EXU NA ENCRUZILHADA


                Foto do baú da tia coruja, de quatro anos atrás.

Viver à espreita, como se cada segundo pudesse trazer algo importante à nossa encruzilhada pessoal e nos tirar dela enfim. É a mensagem de Exu, meu orixá de devoção no momento. Depois de quase oito meses em isolamento social, em alguns momentos mais e em outros menos restritivo, desempregada em caráter oficial desde junho e com um ano novo chegando arrastado, com cara de mais do mesmo, só ele mesmo em suas contradições e multiplicidade para abrir os caminhos. Ouvindo a "pregação macumbeira" do podcast "Benzina", por indicação da minha irmã caçula, há um mês começou minha redescoberta e mergulho em Exu.

Rei do incriado ou do que "existe sem ter sido criado", segundo o dicionário. "E pode isso, Arnaldo?", ouço um grande amigo gozador me perguntando enquanto escrevo. Pode. Mas a gente precisa conceber o caos como berço e fonte maior de toda criação, como fazem as cosmogonias africanas, onde Exu reina em toda e qualquer encruzilhada. E nela ele pode trancar a rua, como quem bloqueia o fluxo adiante, numa perspectiva negativa sobre seu papel neste plano físico, ou como quem nos interpela e impede de seguir no piloto automático, abrindo nossos olhos para enxergar TUDO o que nos espreita ao redor de cada uma delas, sem filtro, máscara ou óculos cor-de-rosa.

Na minha encruzilhada de hoje, vejo um mar de possibilidades incriadas  borbulhando dentro em mim, numa atividade interna quase insana, duelando com o barulho ensurdecedor de vozes das trevas na política, no meio ambiente, na economia, nos relacionamentos e na cultura, querendo me fazer acreditar que aqui só cabem eles ou pessoas conformadas ao modelo que impõem, e os incomodados como eu que se mudem ou desapareçam. 

Nos momentos mais épicos dessa luta inglória, sorrio e pisco para Exu. E ele me conforta lembrando que ninguém é dono da encruzilhada além dele, que tudo aceita e a todos recebe da mesma forma, com sua eterna pergunta matreira: "Esta encruzilhada te pertence?". Porque ele sabe a resposta e elas são múltiplas. Mas cada um precisa escolher a sua e estar ciente disso, para isso elas existem e se sucedem.

Exu, em sua deliciosa ambiguidade, previne também contra alimentar o conforto na encruzilhada como algo positivo, enfatizando que ele pode, ao contrário do que parece, anunciar tragédia. Porque quem perde a capacidade de estar à espreita e adormece sonhando tramas e enredos alheios pode perder a própria vida e sua capacidade de criar a partir do caos de todo dia. 

Nessa lógica, relaxo porque, em quase oito meses, poucas vezes me senti assim confortável e segura. Ao contrário, acordo com esperança de ter achado um caminho para viver da música, da escrita e das ideias e devaneios que povoam meu coração, sem precisar vestir máscaras de poder e nem moldar minha vida a modelos de sucesso ou de felicidade de qualquer tipo. E logo depois me deparo com o isolamento social, com a crise econômica e política no Brasil, com a valorização absurda das pessoas que ganham muito dinheiro, recebem muitos prêmios, trabalham demais, se divertem de menos e só falam de coisa "séria", em detrimento de todas as outras formas de ser e de estar no mundo!! 

Mas se a encruzilhada é de todos e de nenhum além de Exu, tenho chance de instaurar minha própria criação também. Porque, em meio a todas as dúvidas, me resta uma certeza cada vez maior: esta encruzilhada eu ESCOLHI de olhos bem abertos e ela só ampliou minha capacidade de estar à espreita e, quando por aqui passarem as sementes das próximas, saberei seguir com elas. 

  



 


   

terça-feira, 5 de maio de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - TRICOTANDO O TEMPO

Meu magriça e seu amigos de uma vida há muito tempo, direto do baú de sempre.

Registros afetivos têm me trazido de volta imagens e pedaços de mim nessa quarentena. A distância física entre as pessoas leva muita gente a vasculhar e compartilhar seus guardados de encontros suspensos por prazo indeterminado. A transmissão instantânea desses achados por grupos e redes sociais tornou possível a chegada, no mesmo dia, no meu celular, de uma linda lembrança dos nossos filhos pequenos, vindos da Paraíba, e um clique de mim, na redação do Correio Braziliense, em 2001. Juntas e misturadas com outras cenas, lembranças e histórias, essas imagens se enroscaram em volta das minhas agulhas de tricô e me levaram em viagem.

Aprendi os pontos básicos do tricô com minha avó materna, aos 9 anos. Tinha uma agulha e dois novelos (vermelhos, claro!), que tecia até encostar no chão e aí desfazia tudo - igual a Penélope da mitologia grega. É que eu não sabia entender as receitas daquele tempo, escritas numas revistas em códigos cifrados para mim e para minha avó, que tudo fazia da sua cabeça e não tinha paciência de explicar a ninguém como reproduzir. De tanto não chegar a lugar nenhum com aquilo, abandonei as agulhas pouco tempo depois.

Mas em 2013, quando em meio ao resgate dos meus não-talentos descobri a maravilha do YouTube e me tornei capaz de seguir uma receita de tricô, conclui minhas primeiras peças. Exagerada ou eufórica, quem sabe, comprei lã para uma fábrica inteira e, depois de vários gorros e cachecóis, sobrou muita coisa, guardada num saco, anos a fio. Eis que a quarentena me traz uma nova receita de gola de inverno enviada por uma grande amiga, me dando a chance de gastar os novelos guardados.

E não é que peguei gosto na coisa? Talvez não exatamente em tricotar a linha, mas o tempo. Enquanto acompanho o movimento das mãos e o trançado dos fios, contando mentalmente os pontos, entro num estado de transe. Tricotando o tempo, depois de assistir um documentário sobre o "Clube da Esquina", me peguei cismada com o fato de Lô Borges, aos 17 anos, saber o que queria fazer para o resto da vida e estar viajando para o Rio para gravar um álbum duplo, compartilhado com ninguém menos do que Milton Nascimento. Logo veio na cabeça a imagem dele explicando a origem do nome do disco que batizou o movimento dos mineiros na música. Segundo ele, era esquina mesmo, perto da casa onde morava e onde ficava o tempo todo ou, nas palavras do próprio, "militava". No sentido de bater ponto e fazer sua vida ali. Chegava, sentava no chão, tocava, compunha, os amigos vinham, batiam papo, davam palpite, contribuíam na criação. Uma esquina purinha, sem bar, sem música, sem bebida, sem nada, além do encontro de duas ruas, perto de casa.

Ainda entre a contagem de dois pontos meia e dois tricô, pensei, um tanto revoltada: "Como Lô Borges pode ter encontrado sua esquina tão cedo?". Mas continuei na minha, de fiandeira impassível, que demorou demais a encontrar a própria esquina. Aí lembrei da casa dos meus avós maternos, onde aprendi a tricotar e amar histórias. Um lugar como a casa dos Borges, onde as pessoas entravam e saíam, comiam o que tinha, contavam casos, ouviam conselhos, escreviam, costuravam ou dormiam no sofá, sem dar explicação. Eu vivia aquela atmosfera e bebia dela como se fosse algo perigoso e estranho a mim quando, em verdade, jamais foi.

Nada me dá mais prazer do que conhecer pessoas diferentes, ouvir suas histórias, mergulhar em seu mundo e, a partir disso, sonhar crônicas, contos, romances, livros infantis, projetos musicais e o que mais vier. Tricotando ainda, lembrei do meu falecido marido dizendo que tínhamos nos tornado jornalistas porque somos dois artistas medrosos, então ficamos ali, na boca do gol, sem chutar a bola, por medo do que se deseja e, mais ainda, do que se é. Engraçado termos nos encontrado assim, ao acaso, dois artistas empedernidos disfarçados de jornalistas de assuntos "sérios", enganando bem para caramba, e de eu só ter tido coragem de tomar posse dessa esquina que poderia ser dele também (quem sabe?) depois da sua morte. Tricô interessante esse de quarentena.

domingo, 26 de abril de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - PAREI DE CONTAR OS DIAS

               Do baú da mãe de uma grande amiga, abril de 2000.

Os dias em isolamento deixaram de pesar, por isso não os conto mais. Algum mecanismo dentro de mim encaixou, junto com um pedaço novo do inconsciente tornado visível, que me trouxe a sensação de poder encarar as marés adiante, mesmo sem ter a menor ideia da rota ou da duração delas. A essência de existir nos últimos anos, para mim, têm sido: dançar conforme a música, de estilos variados, sempre inesperados, tocadas por um DJ que se entedia rápido e troca os hits sem alívio ou repetição, tipo aquela brincadeira de dança das cadeiras, com alguém sempre caindo de bunda no chão. Consegui me manter em movimento, mas sem entrar no transe maravilhoso da dança feita de corpo e alma entregues. A presença permanente, mais ou menos pronunciada dependendo do momento, de um peso a bordo me impediu: pânico de perder o ritmo, ficar sem repertório de passos ou improvisos, ser atropelada e não levantar mais.

Mas, entre uma série de atividades de teletrabalho, o aviso prévio, a finalização de uma consultoria grande, o preenchimento de projetos diversos de choro e escrita, o tricô, o estudo de variações do maxixe, a candidatura para possíveis vagas de novos empregos, a yoga e os benditos almoço e janta de todo dia, claro, veio um clique! Minha vida tem sido, dentro ou fora de isolamento, um misto de - pandeiro, catar lixo na ciclovia, leis de enfrentamento à lavagem de dinheiro e à corrupção, marketing jurídico, projeto musical de choro, escrita de ficção, violência contra mulher, consultorias em ensino superior, inovação, guias sobre jovens e política, fake news, documentos técnicos sobre saúde do trabalhador, acidentes por causas externas e uma enormidade de sites e redes sociais diferentes para cuidar. E até hoje não troquei os canais, nem dei pinta de estar perdida, mesmo estando demais, seja em relação aos assuntos ou à forma das pessoas se relacionarem, nem sempre transparentes, como eu prefiro. E o principal: não parei de me mover adiante, adiante, adiante, ancorada em longas noites de sono reparador, que começam em torno das 21h30 e me preparam para a mixagem preferida do DJ do dia.

Não consigo fazer sentido do contexto político? Bom, acontece comigo pelo menos desde 2014, com enorme intensidade, pela proximidade e participação ativa do meu falecido marido nesse campo minado e pela minha própria paixão pelo tema. Não sei qual será o futuro da minha profissão? Tenho que ser justa com esse item, o vírus ducha só aumentou o calor na fogueira alta, há anos. Não sei se terei um planeta para deixar para meus filhos? Infelizmente, essa angústia não chegou no isolamento, só tornou-se MUITO concreta. Não entendo os relacionamentos amorosos hoje, depois de tantos anos numa interação singular de amor? Bom, estou nessa desde 2015, quando voltei a ser solteira.

E, ao constatar tudo isso, no lugar de sentir um medo brotando, o que seria normal, diga-se de passagem, senti um sorriso sacana tipo o do Buda, com todo respeito, nascendo, com um recadinho assim: "Se joga, garota! Que baile animado assim não dá para jogar fora!" E isso fez um sentido gigante, em meio a mais uma encruzilhada da minha vida particular, junta e misturada com uma confusão no mundo. Como, aliás, tem feito parte do caminho da minha geração, que nasceu num mundo cheio de regras e certezas, foi socializada nelas, cresceu em conflito permanente entre desafiá-las ou segui-las até a morte, e, chegando aos 40, deu de cara com mundo em NADA parecido com o que nos prometeram se fôssemos boas meninas e meninos. Então, quer saber do que mais?

Olhei para trás e percebi a clareza com que o caminho se fez para mim, mesmo num mar de dúvidas e incertezas, e apreciei sem vergonha ou pudor minha conexão clara e direta com meus desejos e meu valor como ser humano. ENFIM! Embora eu sempre tenha fingido bem demais ser essa pessoa desde que nasci, como quase todos os que me conhecem atestariam. Mas agora, galera, é pra valer! Então, agradeci a oportunidade de me jogar nessas águas adiante do jeito que vierem, dinâmicas como nunca, cada vez menos preocupada com o que me ensinaram sobre o mar que eu quero experimentar entregue à minha experiência dele, e levando comigo o essencial apenas.







domingo, 19 de abril de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - UM MÊS COMPLETO

Ensaios na quarentena com Bernardo Bernardes pelo Skype.

Isolar-se consigo mesmo traz reflexões e reações diferentes em cada um de nós. Conversando com uma amiga que tem ensaiado escrever sobre esse tempo e desistido várias vezes, por algum razão inexplicável, percebi, a partir da observação feita por ela, o quanto universalidade e particularidade se entrelaçam nesse período. A impotência com a pandemia e os complicadores que só os brasileiros precisam lidar de um cenário político bizarro são de todos nesses dias. Mas a variedade dos mergulhos de cada um, enquanto isso, é infinita e muito distinta. Depois de revelar sonhos por aqui, me permitirei ir um pouco além e deixar entrever outras viagens em curso aqui no meu barquinho de papel.

Em junho de 2016, fui demitida pela primeira vez na vida. Um baque a mais em cima do luto do meu falecido marido, que completava então 15 meses apenas. Formada em jornalismo, exerci praticamente todas as funções tradicionais da profissão: repórter, editora e assessora de imprensa, para citar as principais, mas, doze anos antes, havia tomado um "desvio" desejado, e facilitado pelo "destino" de alguma forma, e me tornado gestora de projetos no governo na área de Direitos Humanos. Dali, pulei para organismos internacionais, onde enveredei pela coordenação de pesquisa em temas diversos e segui em navegações novamente no governo sobre assuntos variados, desde formação e qualificação profissional até inovação, nanotecnologia, setor aeroespacial, engenharia e muito mais.

Aprendi essa nova área como quase tudo na vida: metendo a cara, sem vergonha mesmo, e prestando muita atenção nas coisas, tentando estabelecer um sentido lógico (nem sempre possível) às informações e mobilizando minhas habilidades coringa de comunicação, alguma criatividade e muito senso prático para realizar as tarefas recebidas dentro do prazo. Mas, ao ser devolvida ao mar dos desempregados, cada vez maior desde aquele algo distante 2016, não tinha certificação dessa nova "profissão" e não queria e nem tinha como voltar à trajetória interrompida em 2004 como jornalista tradicional.

Engraçado como, só agora, em isolamento, quase quatro anos depois, e cumprindo aviso prévio novamente, em outro emprego no qual estive pelos dois últimos anos e onde tive a oportunidade de estabilizar novamente minha vida, percebo a reinvenção pela qual passei. Em algum lugar de mim, havia um poço de não-talentos pelos quais tinha imensa atração e igual aversão, no sentido de medo: dar certo, dar errado, empatar, não dar em nada, me destruir. Sei lá. Compunham aqueles desejos ardentes mais duramente criticados e, por isso mesmo, incendiários, que guardamos num dos muitos baús do inconsciente, que se tornam conscientes aqui e ali, quase por encanto. E quem não tem nada a perder, como eu sentia finalmente não ter em 2016, resolvi me entregar aos meus fantasmas de dor, e de prazer também, por que não? Obviamente não sem MUITO medo e idas e vindas com relação ao acerto da decisão, muitos recuos, alguns avanços a passos suados. E, assim, me matriculei na Escola de Choro Raphael Rabelo como aluna de pandeiro.

E, nas batidas com som de bacia do meu pandeiro, que incomodava, desde a sua chegada pelo correio em 2013, ouvidos mais sensíveis que os meus, descobri talentos e aprendi a usá-los com uma facilidade e resultados surpreendentes para mim mesma. Eles me levaram a redescobrir minha vocação original para a comunicação social - sim, essa área maltratada no mercado de trabalho, assolada por uma crise estrutural absurda, mas tão essencial ao ser humano e tão minha desde sempre. E, nesse caldo, emergiu uma verve empreendedora e artística (SIM!!), que libertou minha voz de escritora com a publicação do meu primeiro livro de crônicas, contos, mais um romance, a produção cultural de um projeto musical e, mais recentemente, a união de tudo o que mais agrada meu coração atualmente - história, música, palavra, som e afeto entrelaçados no meu primeiro livro infantil "A Lua Curiosa e o Planalto Central", em fase de produção como audiolivro. O post de hoje são flashes dos ensaios da locução realizados toda segunda-feira, pelo skype, com meu amigo Bernardo Bernardes. E olha que descobri ter muito jeito para a coisa, modéstia à parte.

E o pandeiro, que sempre foi um dos maiores desafios de aprendizado da minha vida, finalmente parece ter se ajeitado na minha mão!! Acreditam? Justo quando entrei em ensino à distância e achei que iria naufragar, veio uma autonomia no instrumento até então suada e intermitente, que talvez fosse muito mais fruto de uma insegurança e uma eterna briga interna minha com meu amor por esse instrumento tão simples e difícil do que qualquer outra coisa. Revelações que só isolar-se consigo mesma trazem.

domingo, 12 de abril de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - 24 DIAS DEPOIS

                           Dançando na quarentena com a filha.

Entre noites de sonhos intensos e dias indiferenciados, existo pela metade. Faz mais de uma semana que vejo, enquanto durmo, todos os dias, variações de uma mesma história. Meu falecido marido volta, depois de ter fingido a própria morte e me deixado por anos a fio, enquanto vivia aventuras de todo tipo. Não bastasse isso, está a cada sonho me traindo com uma mulher diferente, uma delas, uma integrante da geração millenium que, ao me ver, tem a coragem de criticar o meu decote como uma atitude machista da minha parte. Pode? Em algum momento, pelo menos consigo o direito a uma DR, mas com ele preso dentro de um televisor e eu debruçada do lado de fora, gritando como uma doida no meio da rua deserta. O sorriso pilantra, um dos mais bonitos e charmosos dele, tenho de admitir, sempre ali, perto e longe, me atordoando e atiçando uma raiva e impotência indescritíveis.

Isso fez com que acordasse, quase sempre, dominada por essa sensação vinda de um enredo impossível, mas tão real e repetido pelo meu inconsciente que deve trazer alguma mensagem a qual teimo em tentar decifrar.  Nessa existência paralela, pela metade, joguei a toalha na cozinha. Não só porque sou péssima, mas porque ODEIO serviço de casa, todo ele, sem exceção, mas principalmente alimentar os outros.  Até bolo de caixa de mercado sai errado na minha mão. Acredite. Tentei na semana que passou e foi desastroso. Não tinha ideia do quanto tenho aversão às tarefas domésticas, basicamente porque, como uma Patricinha do Lago Sul, nunca tinha sido obrigada a realizá-las diariamente como agora. Mas vamos tocando os três com lanches e uns quitutes aqui e ali mandados pela irmã e sobrinha, mãos de fada na cozinha e um ifood cá e outro acolá, que ninguém é de ferro. Pelo menos, ganhar peso na quarentena não tem sido uma questão. Numa das danças da última semana, mais concentrada nos quadris, acordei toda dolorida, quase sem poder pisar no chão e tive de dar um tempo na diversão que ilustra o post de hoje. Mais uma frustração dessa quarta semana de isolamento.

Fiz 45 anos em janeiro e devo confessar uma certa angústia com a aproximação daquele ponto de virada na trajetória de todo ser humano. Não é o declínio, ainda, mas aqueles metros finais antes do pico da montanha russa e depois, naturalmente, iniciar a descida. Claro que essa descendente pode ser lenta, controlada e prolongada ao máximo, tipo o achatamento da curva do vírus, no qual estamos todos trabalhando. Mas dá trabalho à beça e tem vários sacrifícios, como percebemos a essa altura. A questão que me pega hoje é o desperdício desse tempo coladinho no cume da subida de uma vida inteira. Como se o isolamento me roubasse um naco da existência particularmente valioso.

E o que será que o meu falecido marido tem a ver com tudo isso? Não saberia dizer e talvez não haja nenhum sentido objetivo e articulado nesses sonhos. Mas chutaria a existência de uma vontade de reencontrar, na vida real, um objeto de amor, correspondido, vejam bem. Algo que demorou muito a aflorar nesses mais de cinco anos em que estou viúva. Identificar novamente essa chama em mim e não poder agir sobre ela só torna esse tempo meio vivido mais revoltante e alongado para mim. Mas, diante das alternativas dadas por malucos de plantão, em seus planos mirabolantes para driblar o vírus que botou o mundo inteiro em xeque, respiro e penso que, antes uma pausa que um ponto final. E, assim, sigo riscando os dias do calendário desse 2020 que sinto não ter começado de fato.



quarta-feira, 8 de abril de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - 19 DIAS DEPOIS

                  Primeira produção de tricô da quarentena.

A crônica dos dias retirados do mundo pode ser tão intensa quanto a de tempos normais. Pelo menos no meu cantinho do mundo, desfilaram alguns acontecimentos curiosos. Começo pelo mundo animal. Morar na beira de um vale numa área de preservação ambiental, como diz meu arquiteto, um dos primeiros permacultores do Brasil, é lutar com a natureza pela ocupação efetiva do espaço diariamente. Em outras palavras, a ausência humana em qualquer parte da casa ou do terreno se denuncia pela presença mais acentuada (e nem sempre desejada) de algum outro ser vivo - planta, animal, inseto e por aí vai. O que faz sentido para a sustentabilidade da vida. Ninguém merece mais do que consegue usar de verdade. Primeiro sinal de presença humana reduzida nessa quarentena? Menos barulho e mais passarinhos, fato relatado antes, aliás, neste diário.

Depois vieram os quatis, cada vez mais próximos da minha varanda, devorando bananas e mamões em broto e me constrangendo durante minha prática de Ioga. Tive medo de fechar os olhos no relaxamento ou numa postura de equilíbrio e, ao abrir, dar de cara com um desses 15 quatis de todos os tamanhos, roçando meu nariz. Tentei mandá-los passar como se faz com cachorros, mas sendo bem mais selvagens, me olharam sem entender. O jeito foi sacar minha arma mais mortífera: o pandeiro! Toquei com força, largando a mão nas platinelas de zinco, bastante altas, e funcionou. O som ecoou no vale e eles logo fugiram antevendo algo terrível, anunciado por aquele barulho estranho.

Poucos dias depois, percebo uma gata preta, de olhos verdes, recém-nascida, aboletada entre as rodas do meu carro na garagem, miando sem parar. "Saudades dos meus cachorros encapetados!", pensei. No tempo em que ainda viviam por aqui, ajudavam bastante a manter distantes quatis sem cerimônia e gatos, os quais não estão entre meus animais favoritos, confesso. Mas eles fugiram para mata, há quase um ano, e nunca mais os encontrei. Então o jeito foi esperar para ver se a filhote ia embora. Final do dia e ela miando sem alívio, de fome, claro. Mas alimentá-la seria fatal pois sinalizaria uma eventual vontade de adotá-la, o que não estava nos meus planos de jeito algum. Mas o choro semelhante ao dos bebês me corta e divide o coração.

A sobrinha amante dos animais venceu nos grupos de família e me convenceu a dar atum para a danada. Minha filha mais velha executou a missão de abrir a lata e deixá-la entre os carros e esperar para ver se ela aparecia para comer.  No dia seguinte, arrependimento! Ela fechou o cerco à casa, e com agilidade e nenhuma vergonha, estava quase ao mesmo tempo junto a todas as muitas portas, janelas, seteiras e até no telhado de grama da casa, querendo ficar e se insinuando para mim. Tranquei tudo e mantive minha posição. Mas, aqui dentro, me dei conta da minha ocupação da área cada vez mais questionada, enquanto o miado constante me enlouquecia. Toca a ligar para a polícia ambiental, entrar em grupos de whattsapp para doação de animais e torcer, teclando e postando freneticamente, por um final feliz.

Logo uma mensagem no privado: "é fêmea?!". E eu: "não faço a mais vaga ideia!", embora o jeito seguro com que foi ganhando território e se impondo na área me fizesse pensar que era. Mas como se sabe se um gato é macho ou fêmea? E, pior, como alguém que tem pavor desse animal faz para descobrir um segredo assim? Só a sobrinha na causa. Veio e confirmou que SIM era uma fêmea, como eu pensava. E a levou para o seu novo lar, em Taguatinga, onde tem a companhia de outras três gatinhas como ela. Quarentena também pode trazer finais felizes!

domingo, 5 de abril de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - PASSADOS 17 DIAS DE ISOLAMENTO

                                                     Tricô de espera.

Viagem longa pede tempo para se acostumar com as ondas. Dezessete dias transcorridos a bordo deste barco, sem previsão de desembarque, começo a perceber o tremendo esforço psíquico em curso de elaboração inconsciente da realidade. Um lado se mantém firme na repetição de um mantra sobre o caráter passageiro e transitório dessa situação. Basta chegar o dia em que o vírus esteja controlado e tudo voltará ao normal. Mas, cada dia mais, essa voz se parece com uma negação,  resultado de um pânico crescente em mim.  Uma paralisia diante da percepção mais e mais forte de que não haverá retorno possível ao antes, com tudo de bom e ruim que isso significa.

Sair de casa para fazer compras ou passar no banco ou farmácia, com máscara de pano com filtro de papel no meio e ligas de borracha nas orelhas, tornando a respiração difícil em dias quentes, deixar os sapatos usados na porta ao voltar e depois correr para pia para se lavar com água e sabão torna-se um programa cada vez menos atraente como alternativa ao isolamento modorrento em casa. Uma lesão no meu quadril direito, anterior ao vírus, da qual estou me recuperando ainda, me impede de sair para caminhadas na rua, limitando minhas saídas ao rol listado acima. Exercícios para mim, hoje, são: na varanda do meu quarto, ioga, duas vezes na semana e, no quarto da minha filha, em frente à televisão, nos outros três dias, dança aeróbica acompanhando uma playlist do YouTube. Sábado, faxina geral na casa, papinho no hangout com a família no fim da tarde e um zoom com amigas de uma vida, quando conseguimos nos juntar (sempre uma alegria!).

Falo com minha sogra-mãe que completa 90 anos em julho e está em isolamento sozinha com um cachorrinho vira-lata em sua casa em Araraquara. A filha médica, no front em Ribeirão Preto, não pode visitá-la pelo risco ao qual está exposta. A empregada vai todos os dias movida pelo afeto de filha que tem por ela, para cuidar da casa, fazer comida e um pouco de companhia. "Pensar que já tive a casa tão cheia e agora me vejo assim completamente sozinha", diz chorando ao telefone e logo se refaz e muda o rumo da prosa, como é da sua natureza, desde a perda dos dois filhos e, mais recentemente, do marido. "Eu sei que tá chegando minha hora de ir, mas com esse vírus não, né?" e ri gostoso. Percebo uma diferença importante entre o meu isolamento e o dela. Minha sogra não pensa mais no futuro, sabe bem o dela e nada pode mudá-lo, mesmo que todos desejemos que ele dure o máximo possível. Eu tenho no mínimo (espero) metade da minha vida pela frente, dois filhos ainda dependentes de mim para criar e um mar de incerteza a encarar sobre nossas vidas depois do isolamento.

E esse ponto de interrogação cada vez maior no horizonte vai semeando uma angústia em mim. Lendo um livro lindo da escritora Isabel Allende chamado "Longa Pétala de Mar", acabo me identificando com os refugiados da Guerra Civil Espanhola fugitivos de Franco e depois da II Guerra Mundial na Europa, sem saber que mundo encontrariam no desembarque no fim do mundo, que era o Chile, e se haveria possibilidade de retorno, um dia, à terra natal. E só a esperança na reconstrução de sonhos pode alimentar a alma humana nessas encruzilhadas da história na qual fomos surpreendidos (ou, eu pelo menos, fui) - tão diferente das anteriores, mais claramente delimitadas e mais concretas em seus termos.

Então a onda de hoje, domingo, em meio ao isolamento, consiste em terminar o dia, fazendo um tricô de espera e escrevendo, sempre. Buscando a esperança em cada pequeno sinal de solidariedade, de afeto, de janelas se abrindo em oportunidades ou inovações para nossa humanidade, como pão essencial nessa viagem.


terça-feira, 31 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIAS 11 E 12

Distopia ou utopia? Fico pensando qual seria a proposta do vírus-ducha para a humanidade hoje. Como alguém pode confundir antônimos, você me pergunta. Não pode mesmo. Trata-se da nossa encruzilhada atual, da qual participo. O nosso modo de vida está em xeque, independente de como cada um de nós enfrente o isolamento e todas as suas consequências. Iguais como humanos sim, mas tão desiguais como cidadãos. E isso escancara nossos piores pecados como sociedade global, como economia, como cultura, como seres teoricamente éticos.

Viver sem opção de sair, como os encarcerados e hoje os isolados, traz grande opressão e privações de toda ordem à subjetividade. Mas saber que se conta com um leito de UTI em hospital privado, ou um salário garantido no final do mês para pagar as contas, muda a radicalidade dessa distopia atual. Como tenho na minha imaginação uma grande amiga e companheira de jornada, sobretudo nos piores momentos, e a esperança arraigada em meu coração, prefiro pensar em tudo isso como um convite à construção da utopia, enfim! Uma que se molde exclusivamente pela experiência concreta do bem-estar do humano e não por uma ideologia ou teoria qualquer, num movimento contrário a "utopias" anteriores, sem nos preocuparmos nem por um segundo qual será o ornitorrinco teórico-ideológico nascido a partir dessa empreitada.

Nesta utopia, para a qual escuto o vírus - tão fofinho em sua aparência, e tão nefasto em seus efeitos (como muita gente por aí) - nos chamando, há algumas opções bem interessantes, a meu ver. Primeiro com relação ao consumo. Deu. Pessoas não são objetos e está na hora de ter só o realmente necessário para viver com dignidade, e com a possibilidade de sonhos individuais. Isso não alimenta o crescimento econômico baseado na produção cada vez mais intensa para abastecimento de uma demanda cada vez mais desconectada do uso real dos produtos? Paciência. Para quem sente arrepios de pensar nisso que proponho como utopia, pense na distopia permanente de ter sua vida controlada pelo resto dos seus dias pelo vírus da vez,  fugindo da devastação do planeta, e ditando se você pode ou não sair de casa, encontrar seus amigos ou abraçar seus pais e avós.

Segundo: um mundo onde o valor de todo trabalho está no que ele proporciona aos seres humanos e não na riqueza monetária que gera. Então, empregadas domésticas, músicos, cientistas, economistas, artistas de todo tipo, jardineiros, médicos, todo mundo tem um valor ENORME, cada um no seu quadrado de saber, nenhum deles mais ou menos importante, todos necessários ao pleno bem-estar da humanidade. Tem vontade de chamar essa proposta do corona de distopia? Então, pensa num mundo onde pessoas sem água potável, sem saneamento básico, sem esgoto e sem comida saiam pelas ruas desesperadas, em busca de alívio e encontrem nada. Muitos morrerão nessa empreitada, claro. Mas não todos. E os sobreviventes dessa horda da distopia de hoje vão invadir a sua utopia de ontem e te mostrar que não existe possibilidade do mundo antes do corona sobreviver intacto. Neste dia 12 de quarentena, proponho um brinde à nova utopia trazida pelo vírus-ducha a quem tenha coragem de construí-la!

domingo, 29 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIAS 9 E 10

                                          Luvas de faxina

Nada me impressiona mais que o tempo e suas revelações. No baralho mítico de tarô, que costumo jogar, a carta do "eremita", associada em outros decks com o número 9 (dia de ontem do diário), é Cronos. Pai de Zeus e de todos os mais poderosos deuses do Olimpo. Existia antes de tudo e, embora tenha sido morto pelos filhos, depois de tê-los engolido um a um ao nascer, para não perder a supremacia do poder, segue como a presença mais persistente no nosso universo humano. Talvez por ser uma criação e necessidade exclusivamente nossa, de marcar a passagem sobre a terra e assim termos certeza de termos existido. Dez dias completos de isolamento social ou quarentena me trouxeram a visão completa do meu ponto fraco desnudada pelo tempo: a maternidade.

Disfarçada sob a capa de desespero - real, diga-se de passagem - pela minha falta de talento na cozinha, estava, na verdade, o meu maior desafio desde o nascimento dos meus filhotes e antes até, quando assumi essa função com relação às minhas irmãs mais novas, após a morte da minha mãe: prover TODAS as necessidades dessas criaturas. E o tempo, na sua infinita capacidade de desgastar até esvair os véus e disfarces humanos, me mostrou o começo, novamente. A cobra que morde o próprio rabo, outro símbolo recorrente do tempo. Quando, independente de coronavírus, luto, desemprego, e tudo mais ao redor, existia uma menina, depois uma mulher, incapaz de aceitar limites sobre sua capacidade de produzir o bem-estar no outro e no grupo familiar.

Esse ser primitivo da minha maternidade não suporta tudo o que sente como fracasso, muito embora, em grande parte das vezes não o seja, e a racionalidade de hoje consegue perceber a diferença, felizmente. O treino brutal de receber do além um bebê indefeso, sem fala e sem capacidade de prover suas próprias necessidades, tornou esse mecanismo primitivo em mim numa força sobrenatural. Mas o tempo treina, nos torna excelentes em algo e aí inverte a brincadeira, completamente. Porque ele é círculo e não linha reta, lembram? E, desde há algum tempo - com a emancipação completa das minhas irmãs em mulheres adultas, e a morte do meu amor e todas as suas consequências, e depois ou junto com isso tudo, o desenvolvimento dos meus filhos em adolescentes e, no caso da mais velha, adulta -, tenho lutado com a impotência diante de um número cada vez maior de necessidades vitais da parte deles, as quais não posso e jamais poderei prover. Essas que são mais complexas do que comer, dormir, dar banho, vestir, aquecer etc. Aquelas que fazem parte do processo de individuação deles, suas batalhas, escolhas, dores e delícias de serem quem são, como diria Caetano.

E conviver, todo dia, com o fato de que não consigo alimentar esses filhotes como eu gostaria, que teoricamente faz parte do grupo de necessidades às quais eu DEVERIA ser capaz de prover, me trouxe uma opressora e avassaladora sensação de fracasso. E isso, para ser muito sincera, tem sido o maior dreno da minha energia e a maior fonte de ansiedade nesse período. Algo sem qualquer conexão com o vírus-ducha.

Mas hoje acordei consciente e disposta a me entregar ao treino de deixar cada um deles fazer suas escolhas e lidarem com elas, inclusive à mesa, dentro do contexto atual de restrição de outras comidas melhor preparadas. E detalhe do nível de dificuldade da tarefa: NÃO SOFRER COM ISSO. Porque não tem drama, ao contrário, tem processo de crescimento e amadurecimento para todo mundo, eles e eu, inclusive. Morrer de fome com dispensa cheia não tem jeito. E, resguardada essa condição, me parece a melhor maneira de aliviar essa pressão no meu peito, que pode tornar o isolamento com quem eu mais amo no mundo em algo opressor para além do que é, por si só, perder a liberdade de ir e vir, sem culpa.

PS - Aos que me seguem nestes registros, quero comunicar outra decisão soprada pelo tempo em meu ouvido. Nem tudo o que se escreve num diário serve para publicação e, muitas vezes, precisa tempo (sempre ele!) para depurar o que se quer comunicar. Portanto, vou escrevendo aqui, a partir de hoje (dia 10), na medida em que tiver algo maduro o suficiente para compartilhar. Aqui também, no blogue, trata-se de maratona, não corrida de tiro.

sexta-feira, 27 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 8





                            Visitante do dia, comendo banana.

No mar de dias indistintos, navegamos ondas radicais dentro de nós. Acordei cedo, seguindo a lição da última segunda-feira, na qual fui atropelada por levantar tarde demais, tomei café e a neblina nas árvores do vale tornou mais aguda essa melancolia no ar. Fui para a varanda praticar uma ioga leve, pois estava ainda dolorida do exercício de cardio, enviado por uma amiga num dos grupos, e que resolvi fazer há dois dias e ainda não me recuperei. Tem uma tensão acumulada na região dos ombros e pescoço, quase permanente. Mas a gente maneja com algum alongamento e muita respiração. Medito e logo ouço um roçar de folhas particular. Sinal de visita. O quati da foto deste post e sua família numerosa - presente, mas não clicada - fazem a festa com o cacho de bananeira ainda em broto no quintal, bem perto do parapeito da minha varanda. Tanta paz na natureza e tão pouca em mim.

Talvez hoje seja o dia mais difícil de escrever, pela sua característica cinza, a cor sem lado definido e, apesar disso, desbotada e fria, ao menos para mim. Fiz um almoço bastante gostoso, pronto no horário, mas de pouco ibope. Algo muito decepcionante, confesso, que me fez perceber que melhorar o humor da turma, nesses dias, está muito além de uma questão de talento culinário. Trata-se de mais uma impotência a lidar, entre tantas. A navegação é individual, e os meninos precisam encarar dentro deles, como eu em mim, as muitas adaptações necessárias (quase todas indesejadas) e frustrações pequenas e grandes, em tempos de vida do avesso, sem data para voltar ao normal. Então, recolho a vela porque não tem vento mesmo, como e sigo o dia, tentando apenas chegar ao final dele. Por hoje, só por hoje, tem que bastar.



quinta-feira, 26 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 7

                                          Diários dos últimos anos.

Dia de pedreira, lidando com o misto de sentimentos conflitantes trazidos por esse isolamento. O sétimo dia tem sempre um significado de terminar de sepultar quem partiu. A essa altura, a irreversibilidade da morte se estabelece. Talvez seja a angústia de admitir a permanência desse estado de vida em suspensão o que despertou, ontem, em mim, uma estranha sensação. Explico. A bateria do meu celular arriou e ficar isolada sem esse aparelhinho mágico seria insuportável. Saí, então, para buscar um telefone de reserva da minha irmã e levei os filhos junto para uma voltinha, depois de tantos dias, percebendo a tensão crescendo neles também nesse confinamento.

Foi tão esquisito. Foi como fazer algo muito errado e o sentimento conhecido como culpa me invadiu, assim que entramos no carro. Ao dar voz a isso, meu filho, no seu pragmatismo de pessoa de exatas, disse logo: "Mas você está mesmo quebrando uma regra". E eu calei. "Mas tinha uma "razão" para isso!" Pensei comigo, em defesa própria.  No caminho, os três observavam o movimento de ida e vinda de carros. E constatamos muito mais gente circulando do que o esperado, e a luz vermelha acendeu logo porque sabemos que isso não é nada bom.

E talvez seja esse o lado feio das coisas que vive em nós, mencionado no dia 6 deste diário. Quem não quer fingir que a verdade é mentira para seguir a vida e pronto?! O problema está em CEDER a essa força interna e embarcar numa viagem maluca do tipo que levou Nero a atear fogo em Roma. E não estamos muito longe disso, infelizmente, neste sétimo dia.

No Brasil, além do vírus, há uma volatilidade constante do ambiente político, na qual estamos mergulhados há tempos, mas que ganha contornos dramáticos numa hora assim. Mas, na fronteira entre a civilização e o justiçamento, na qual nos habituamos a tocar adiante, as escolhas individuais têm um peso gigantesco. É injusto, quase medieval, mas chegamos ao ponto onde a consciência de cada um precisa ser forte o bastante para iniciar um processo coletivo de mudança, por uma simples questão de calamidade pública.

O hábito de escrever diários desde os dez anos de idade, primeiro de forma esporádica e, a partir dos 22 anos, quase todo dia, me ensinou que refletir sobre nós mesmos e nossa interação com a vida, enquanto se caminha, faz muita diferença. Como se a semente de um entendimento meio difuso de ontem, quando registrado, recebesse uma poderosa ajuda para se revelar por completo, nos alimentando de uma consciência extra sobre a nossa parte na trajetória. Esse exercício deixa rastros claros e preciosos das forças em conflito constante dentro de nós, e como atuam nos levando, em vários momentos, a PREFERIR nos agarrarmos a qualquer mentira, e quanto mais mágica, mais atraente, porque nada exige mais esforço, trabalho pessoal e abertura do que a verdade. Pior. Embora seja a única via verdadeira de transformação, ela não traz garantia de resultado, só de processo e, no fundo, a vida não passa disso, um longo processo com um ponto final mais ou menos abrupto e sempre inesperado.

Talvez seja essa atividade insana da minha parte, em registros privados - fotografei só os diários últimos cinco anos para ilustrar o post -, que me forjaram escritora. Minha voz foi encontrada nessa lida diária comigo mesma, tendo no papel e na caneta instrumentos para me ver melhor, e isso inclui o pior de mim. Nisso descobri que ninguém pode escolher a verdade sem encarar o pior de si, da humanidade e de quem se ama. E quanto mais grave o momento, mais precisamos ser capazes de sustentar o olhar e ganhar consciência para seguir a estrada mais difícil, no caso atual: ficar em casa isolados, sem saber até quando, embora cada fibra do nosso corpo e espírito, ou pelo menos do meu, peça para voltar à vida normal agora.

quarta-feira, 25 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 6

                       Registro histórico, encontro de amigas.

Por onde começar quando algo parece interminável? É a reflexão do dia. Hoje acertei a mão no almoço, graças à Rita Lobo, minha guia, minha luz para pilotar as panelas de agora em diante. Apesar disso, não consegui tirar a minha filha mais velha de uma tristeza profunda (a maior registrada até aqui) e nem o mais novo da sua irritação com estudos a distância. "Se é para ficar fazendo dever em casa, preferia ir pra escola", declarou. Mas minha parte com relação à alimentação dos filhotes foi realizada, botei comida descente na mesa, em horário compatível com uma refeição chamada almoço! E nada no mundo mundo me alivia mais do que ter certeza de que NÃO HÁ NADA MAIS QUE EU POSSA FAZER a respeito. Agora pertence a cada um lidar com o turbilhão dentro, causado pela insegurança fora, e a falta de previsibilidade sobre quando termina a emergência.

A angústia do "até quando?" talvez seja o que tenha nos igualado e, por isso mesmo, nos tornado mais humanos nesse tempo de exceção. Guardadas as devidas proporções entre o tamanho do impacto no bolso e no planejamento de cada um, e na rede de proteção disponível para enfrentar a calamidade, ficamos no mesmo barco ou nos sentimos assim, enfim. De repente, vem uma clareza sobre a falsidade da ideia de uma pessoa pode estar bem pra valer, enquanto outras morrem de fome, violência, negligência, omissão, ataques de ódio e... coronavírus!

Precisou esse bichinho microscópico saído da China para dissipar essa névoa maluca que nos hipnotizou, turvando nosso entendimento sobre a importância da verdadeira política para a coletividade, aquela com P maiúsculo cujo significado é serviço e pactuação para o bem de todos, sobre o valor capital do diálogo sem desqualificação do outro, sobre a escuta generosa do "outro lado",  e o que se passa com quem está num sapato aparentemente diferente do nosso - só que não -, como nos esfrega na cara o corona.

Quanto mais iguais, mais humanos, em todos os matizes dessa palavra que vai dos mais nobres aos mais mesquinhos comportamentos e TODOS, sem exceção, fazem parte de cada um de nós, assim como da coletividade. Os preconceitos caem por terra e algumas verdades negadas começam a gritar e fica mais difícil fechá-las de novo em algum porão....Embora haja os que preferem a morte agarrados à mentira do que admitir erros e fracassos.

Um exemplo: a tecnologia. As pessoas mais velhas a temem e muitas vezes a desprezam, culpando-a pela "degeneração da sociedade", os mais jovens a amam e constroem todos os seus relacionamentos, de diversão ao ganha-pão, em torno dela. E, quando a emergência nos iguala, enxergamos claramente que a tecnologia não pode ter culpa, ela não tem intenção, está aí para nosso uso. E somos nós, humanos, mais uma vez, nas nossas ambiguidade e negação, que a utilizamos para disseminar o ódio, a desinformação, a superficialidade e o consumismo, de pessoas e relacionamentos, inclusive. Mas, em meio ao vírus-ducha, percebemos todo o seu potencial como instrumento de manutenção de vínculos e aproximação de pessoas, como possibilidade de trazer alento, soluções concretas e fundamentais para o avanço da humanidade. Como é da minha natureza, escolho olhar o lado feio disso tudo bem no olho e, sustentando a mirada, observar o que dele vive em mim, escolhendo, cada dia, o outro lado nesse começo interminável, no qual o mundo está mergulhado.

PS - Não pude resistir a postar o registro histórico de quatro das minhas amigas-irmãs em reunião por vídeo no celular ontem à noite. Pela ordem, uma delas fazendo o caçula ninar, outra (sem óculos, né?) espremendo a vista para ver mais pertinho o pessoal do outro lado (imagino), a terceira com esse sorriso meio de lado tão dela, quando algo que vê toca seu coração, e a quarta, guerreira danada com uma baixinha em casa que é um furacão, deixando a faxina quase eterna nessa situação de lado, para encontrar as amigas. O próximo encontro eu não perco, visse?

terça-feira, 24 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIAS 4 E 5

                                          Vista da Yoga na minha varanda

Pois é, o dia quatro me derrubou. Não deu para escrever porque fui atropelada pelas minhas dificuldades em lidar com o momento. Pensa que porque atravessou o oceano vai conseguir cruzar o rio?! Errou. A vida é campeã de trolagem, como dizem os meus filhos. Então, precisei de mais tempo para deixar o ontem vazar e me dei licença para escrever um diário que seria, na verdade, um quarentaeoitoário, se essa palavra existisse, claro! Enfim, sobre o dia quatro, acordei atrasada numa segunda-feira, em teletrabalho e com todas as funções domésticas às quais não estou habituada por fazer. Até aí nada, isso acontece até sem quarentena.

Mas ontem bateu muito diferente, como uma pedrinha jogada no lago, gerando pequenas ondas ao redor de angústia fina. E esse momento de relacionamentos quase integralmente virtuais não ajudou. Invisibilidade sempre me assustou, sobretudo quando sinto ser eu a alma penada. Chame de exibicionismo, se quiser, deve ter um pouco disso mesmo, ou de complexo de primadona - meu padrinho me chamava "Cigana Sandra Rosa Madalena" quando eu tinha apenas quatro anos. Vejam só! Mas a falta do espelho do outro me desnorteia.

Seja o silêncio cheio de formalidades de um amigo, depois de uma briga, preenchido pelas fantasias mais loucas que vivem em mim sobre seus significados. Ou a relação de trabalho que vira uma espécie de incômodo por inexistência de diálogo cara a cara, com algum grau de franqueza e uma via de ida e outra de volta pelo menos. Me magoa não poder dizer seja o que for de frente e não conseguir me perceber nos olhos de quem me vê. Vou virando um fantasma, perambulando, sem saber por onde e nem porquê. Necessito sentido para não perder a raiz.

Felizmente tenho meus dois filhotes tão amados ao meu lado, mas aí enxergar neles minha incapacidade de cozinhar algo que preste dói mais que tudo e foi o tiro de misericórdia de ontem. Eu sei que no dia 2 destes registros jurei aprender a não ser uma mãe assim. Mas, tenham paciência, vinte e dois anos não se mudam em cinco dias... nem que sejam em tempos de vírus-ducha. Aliás, sempre foi um motivo de discussão recorrente entre meu marido e eu essa minha coisa de não sossegar, de não aproveitar as coisas, como quando esses filhotes não respondem ao meu olhar com alguma coisa que me diga: "tudo bem!". E isso é uma fantasia de onipotência, eu sei, mas a maternidade necessita um pouco dessa capa para nos fazer acreditar que podemos dar conta do trabalho, senão fica pesado demais, em muitos momentos.

Mas, hoje cedo, uma amiga me perguntou pelo post de ontem, num grupo de irmãs que temos, com conexões em Brasília, João Pessoa e Madri. Chique, né? E eu respondi dizendo que tinha sido "atropelada" no dia 4. Daí veio uma avalanche de dicas, receitas, textos, consolos, meias-broncas, vídeos de exercícios e uma série de ponderações sobre o meu nível de exigência em relação a mim mesma - sempre. E, logo depois, chega assim, na hora exata, a mensagem inesperada de uma pessoa tão querida trazida pelo meu encontro com o choro, entre tantas que essa música, que é também uma roda de afetos, me trouxe. E dizia:

"Aqui estamos, meu amor e eu, morrendo  de  saudade dos filhos e netos que sumiram. Um lado meu  entende, mas o outro, não, e aprendendo a CONVIVER 24 horas por dia porque não tem nada de "vou dar um pulinho ali". Sabe do que tenho mais saudade? Dos meus meninos nessa idade linda da adolescência. Sempre disse que eles foram excepcionais, assim como são adultos maravilhosos (e são mesmo, porque convivo com os dois!). Marina querida, você é uma inspiração. Queria, neste tempo de "corona", escrever sobre meus filhos e pude brevemente fazê-lo. Você foi o gancho. Obrigada e um beijo".

E esse amor, jorrando pela tela do celular, me trouxe de volta à raiz e ao sentido de tudo. Então, não é tão ruim assim a gente ter essa sensação selvagem de mãe em estado de ameaça iminente pela sua incapacidade de alimentar os filhotes, mesmo que eles tenham 22 e 14 anos e não estejam passando nenhum tipo de privação. E o sentido não está no eventual silêncio ou invisibilidade nos quais caímos vez por outra, por alguma razão que não nos pertence, mas no afeto que espelha nosso valor como ser humano, e a certeza de que, mesmo isolados, jamais estamos sós quando amamos.


domingo, 22 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 3

                                          Foto: Ana Flora Caminha

Amo conversar, mas tenho apreciado muito o silêncio cheio de sons dos últimos dias.  Os passarinhos ao redor da minha casa estão fazendo uma rave, cantando como nunca, o dia inteiro. Como a natureza foi minha maior professora e confidente na minha quarentena pessoal, iniciada com a perda súbita do meu marido e amor, há pouco mais de cinco anos, estou sempre ligada no que ela tem a dizer. Sim, sou do tipo que converso com as plantas e acho que elas me respondem, sem palavras, pelo menos por enquanto (fiquem tranquilos)! Tendo acalmado meu pânico inicial de não dar conta da gestão das tarefas domésticas, pude sair um pouco da atividade insana dos últimos dias de colocar a casa em ordem para passar o inverno, para escutar um pouco mais.

Aí lembrei da minha viagem recente com meus filhos às Cataratas do Iguaçu, no início deste mês de março, e do quanto me impressionou o barulho das pessoas e uma certa insanidade com relação às fotos e selfies, diante de um dos cenários mais imponentes do mundo. Tinha estado ali em 2001, quando ainda se podia ir de bote embaixo da cachoeira principal, e fui tomada na época de profunda adoração, no sentido religioso mesmo da palavra, por aquelas águas em queda livre sobre as rochas. Sempre quis levar meus filhos até lá para que pudessem experimentar essa sensação do silêncio da PAZ interior diante do que é tão maior do que nós. Uma das experiências mais reais de plenitude em mim guardadas.

Mas havia tanta gente, barulhos de helicópteros sobrevoando com turistas em vista panorâmica das águas e flashes infinitos, num volume semelhante ao das Cataratas... que não deu para revisitar aquele lugar dentro de mim. Até porque o nível do rio Iguaçu estava muito baixo e o volume de água nas quedas não chegava a um terço do esperado para essa época do ano. Ainda assim, a natureza segue impressionante, mas os visitantes não se deixam ouvir sua voz porque, em muitos casos, nem prestam atenção, preocupados em reproduzirem a foto postada por não sei quem que bombou de likes no Instagram.

Mas o que tenho pensado, nesses dias de isolamento dos seres humanos, é que a natureza PRECISAVA demais desse respiro. Fomos longe demais em tanta coisa, sem nos darmos conta, por incapacidade ou medo de ouvir o que nos diz o silêncio dentro e fora de nós. Consumo demais, sem necessidade real, barulho demais, movimentação em excesso, foto então... O que será que faz de nós criaturas incapazes de simplesmente apreciar cada coisa no momento em que nos deparamos com ela? E de guardar isso, no coração apenas, onde toda a essência de uma vida se abriga, sempre, quer a gente entenda e aceite isso ou não.

E quando o vírus-ducha nos recolhe às nossas casas, e quem sabe também ao nosso lugar nesse planeta, a natureza toma conta e dá show: no canto dos passarinhos, no ninho ao lado da janela da casa da minha amiga querida, cuja foto ilustra esse post, nos canais de Veneza, no ar mais puro na China, em São Paulo e em todas as outras grandes cidades, finalmente livres da sua atividade insana!

A questão agora é: o que cada um e a sociedade vão fazer desse silêncio cheio de sons?! Os registros das janelas, disparados pelas redes sociais para manter o contato com o outro e mostrar o colapso do nosso modo de vida, mundo afora, vão servir só para reforçar o medo do porvir? Da doença ou da solidão, do resultado das nossas próprias escolhas (ou medo delas), gritando dentro de cada casa em quarentena, quando não se pode fugir de quem nos acompanha, nem do tipo de relação estabelecida com eles? "E depois?", me pergunto. E sei que a melhor resposta virá dos passarinhos e da conexão entre eles e a essência humana.

sábado, 21 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 2


Estranho amanhecer na mesma cama, casa, lugar, na companhia das mesmas pessoas, e parecer esquisito. Sábado. Dia de ficar em casa mesmo. Mas a quantidade de coisas a aprender e rotinas a refazer entregam a anormalidade de hoje. As mensagens são frenéticas nos grupos de whattsapp, de notícia a meme e playlist, aos convites para participar de conferências nos mais diversos aplicativos. Hoje, no entanto, me chamou a atenção a maneira como tudo isso chegou para os meus filhotes.

O mais novo adora ficar em casa de pijama, dias a fio, sem sair, jogando online com os amigos, em tempos normais. Mas acordou com o "ombrinho caído" às 15h30, quando eu finalmente manejei minhas tarefas domésticas a ponto de conseguir botar comida da mesa. Afinal, estou bem no começo do meu treinamento, iniciado ontem, sob decreto do vírus. A irmã acordou antes e estava decifrando comigo, com a orientação da minha irmã do meio, ao telefone, como separar as roupas sujas e usar a máquina de lavar. Muitas dúvidas, mas ela felizmente estava muito segura e detalhista, como sempre, e respondeu todas elas tim-tim por tim-tim.

O meu pijaminha senta finalmente na mesa e olha para o nada, de cara amarrada. Mesmo com a chegada da adolescência há algum tempo e a "cara de bunda permanente", natural nessa fase da vida, como diz a irmã dele, farejei algo errado. Olhando fixamente para o prato de comida, confessou: "mãe, esse negócio da comida tá me matando". Magro como ele só, tem um paladar dos mais apurados desde pequeno, e a exigência com relação ao arroz com feijão faz com que só goste dessa mistura preparada por muito pouca gente, uma delas, minha querida assistente (felizmente) ou sua mãe, que veio antes dela, de quem falei ontem, que está em casa. Ciente da minha limitação no campo do arroz com feijão, fiquei quieta, pensando em como responder.

A irmã, desde cedo, entre irritada e cooperativa com as tarefas a realizar, seguiu comendo e não reagiu. O que também não me pareceu normal, pois os dois vivem se provocando e implicando mutuamente. Ela também fica muito alterada desde pequena quanto tem fome e acha nada do que goste para comer. E agora não tem jeito, porque só temos nós três para cozinhar e ponto. Aí me dei conta de como essa quarentena está ensinando algo fundamental sobre a vida para os meus filhos. Compensando, inclusive, um dos meus pontos fracos como mãe, confesso, Mais um! Sou muito protetora e mimadora. Um amigo aliás, em vias de se tornar pai pela primeira vez, fica impressionado demais com isso e me diz sempre: "você é muito mãe!", o que só pode significar exatamente o que acabei de dizer e é a mais pura verdade.

Mas ensinar aos filhos o sacrifício necessário em vários momentos da vida faz parte das lições fundamentais para torná-los capazes de enfrentar os desafios, maiores ou menores, e as FRUSTRAÇÕES, que fazem parte da vida de todo ser humano. E olha que ter que comer o que a mãe que não sabe cozinhar prepara só é sofrimento para filhos de uma Patricinha do Lago Sul, como eu, que fique MUUUITO claro! Mas, ainda assim, faz parte do aprendizado deles e meu também, nessa quarentena. Porque eu preciso aceitar que é assim, sem transformar isso em algo de outro mundo, que não é e nem nunca foi.

Então, disse apenas: "Tem que enfrentar o arroz com feijão da mamãe mesmo, para encarar a faxina no banheiro e a pia de louça, né?" e pisquei. Ele riu, daquele jeito só dele, com o olho bem miúdo e ainda assim soltando luz, vinda daquele sorriso iluminado como do pai dele. E eu soube, então, que estaremos bem. E, imediatamente, recebi a confirmação da mais velha que, ao ouvir minha resposta, me lançou um dos seus 1000 olhares, cada um com um significado bem específico e, no caso, com uma mensagem bem clara de apoio. "Verdade" seria o nome desse olhar, se os tivesse catalogado em algum lugar. Terminou o prato e declarou que ia tirar uma hora de folga para depois estender a roupa que está na escala de tarefas que fizemos e penduramos na geladeira ontem. Seguem os ensinamentos do vírus com nome de ducha por aqui.

sexta-feira, 20 de março de 2020

DIÁRIO DE QUARENTENA - DIA 1

Há coisas que deveríamos saber, mas só os eventos irreversíveis nos fazem lembrar. Não é minha primeira quarentena. Estive aqui antes, mas sozinha, porque o meu mundo tinha terminado, enquanto o resto da humanidade seguia na mesma ilusão na qual eu vivia antes da morte que abalou o meu chão particular. Neste 2020, que chegou botando para ferver, pelo menos estou em quarentena na companhia de milhões de pessoas, tão perplexas, incertas, impotentes e amedrontadas como eu, o que, de alguma maneira muito egoísta, é verdade, me consola. Porque ficar de quarentena, enquanto o baile segue sem notarem sua ausência, traz um certo recalque, não vou negar.

Como na minha ficha lá em cima deve estar escrito que eu sou do tipo que, no passeio de ski-bunda nas dunas pede sempre para ser "com emoção", embora eu NUNCA escolha isso nos passeios, a quarentena coincidiu com a necessidade imperativa de buscar novas formas de ganhar o sustento. O que não me torna mais especial do que nenhum dos outros milhões de habitantes do globo, na mesma exata situação. Mas, como meu barco de papel tem feito manobras radicais por sobre ondas havaianas, tenho a audácia de acreditar ser capaz de, ao menos, tentar, com alguma chance de sucesso, surfar nela e viver para contar a história.

E, só para o caso de eu não conseguir, deixo tudo registrado nesse diário de mais uma travessia. Começo contando a história da morte de uma "Patricinha do Lago Sul". No caso, eu, apesar da imensa vergonha que sinto dessa confissão. Acordo hoje sem a menor ideia de como alimentar meus filhos e eu mesma, me debatendo com questões sobre como ligar minha própria máquina de lavar roupa, fazer arroz e feijão e dar faxina no banheiro.

Fui abençoada, ao longo da vida, mesmo nas maiores intempéries de perdas e dificuldades pessoais, com a presença constante de um anjo que entra e sai da minha casa e deixa tudo tão perfeito, que eu nunca tive que aprender a fazer coisas essenciais, repetidas todo dia, sem interrupção, 365 dias por ano, numa casa, para que fique limpa, arrumada e com aquele cheiro delicioso vindo da panela na hora  das refeições. Para minha sorte, minha falta de habilidades domésticas e meu berço de ouro não me impediram de ter uma relação de amor com as mulheres que exerceram esse papel de anjo.

E nem o coronavírus, que destruiu a economia mundial e botou em xeque a política e os sistemas de saúde de todo o planeta, pode corroer o valor dessa relação! Ela me salvou, de longe, sem eu pedir, mandando áudios contando onde estão as coisas no meu próprio congelador, e o que fazer com elas para não passar fome em casa, com a dispensa cheia. E ela, que vive dizendo que eu sou muito sabida porque vez ou outra respondo alguma pergunta sobre INSS, direitos ou coisas assim, me deixa maravilhada com o seu saber! E, para minha felicidade e dos meus filhos, mesmo à distância, cuida de nós, como eu sempre tento cuidar dela e da sua família, na medida do que posso. Então, vamos sobreviver à quarentena, cada uma na sua casa, segurando uma na mão da outra, como quando fiquei viúva, depois perdi o emprego e o filho dela foi preso, o pai adoeceu e morreu, e também quando a filha dela se formou em Administração, dia desses, sendo a primeira da família com diploma de curso superior. E, quem sabe quando a vida volte ao normal e ela retorne, a gente possa mostrar a casa inteira e bem cuidada a ela, para que tenha orgulho de nós e de tudo o que aprendemos. É algo a cultivar como meta nessa maratona que só começou.